Corrupção, obamas e europas. Conclusão do depoimento de "rentrée"
21 — Tem-se falado muito de corrupção. Mas, na opinião de muitos, pouco ou nada mudou. Há quem diga que esta apatia interessa a quem pode mudar a lei — o poder político —, os mesmos que não estão interessados em combater o fenómeno. Concorda com esta ideia?
O problema da corrupção em Portugal é mais um problema moral do que um problema de leis, magistrados e polícias. Com efeito, não é por acaso que os países menos corruptos do mundo são precisamente os mais liberais e os mais capitalistas, porque o controlo é comunitário, dado que o corrupto é socialmente sancionado, enquanto que, por cá, esta ideia de Estado-Ladrão dá aquela esfarrapada desculpa do Zé do telhado, porque ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão... Enquanto não fizermos uma revolução cultural, a corrupção é directamente proporcional à própria evasão fiscal, também ela não socialmente condenável, dado que o Estado, mesmo em democracia, continua a ser um “lui”, um “eles”, os “soberanos”, de quem tentamos sacar algo. Só quando o Estado formos nós é que mudaremos o ritmo.
22— Portugal é um país de corruptos, como muitos dizem?
Os partidos que a permitem a corrupção passaram a ser controlados pelos favoritos da chamada sociedade de corte, os tais que, com as suas castas, tiveram a ilusão de conquistar o poder e que usam Estado a que chegámos como presúria, para distribuírem os troféus da conquista pelos supostos vencedores, para que os vencidos tenham a ilusão de espera pela alternância dessa quase pilhagem e mantenham este situacionismo predador do “comer à mesa do orçamento”. O pior é que dão o nome de democracia e de Estado de Direito a este sucedâneo de feudalismo, mas já sem nobreza nem clero.
23 — Em que é que a corrupção mina o sistema democrático?
Os partidos correm o risco de passagem à categoria de meros bandos, onde o principal valor tem a ver com o investimento individual na militância, esperando-se um retorno imediato, nomeadamente pelo curto-circuito da cunha e de todas as medidas de efeito equivalente à falta de imparcialidade na administração da coisa pública.
24 — Acha que as pessoas, em Portugal, têm medo de denunciar os actos de corrupção? Porquê?
Voltando ao paralelismo com a evasão fiscal, direi que só quando atingirmos uma efectiva democracia fiscal é que poderemos gerir a coisa pública de forma comunitária, retomando o velho lema de “o que é comum não é de nenhum”, mas desde que o entendamos o comum como coisa da nossa propriedade e posse, onde os governantes apenas são gestores temporários e não donos. Quase me apetecia voltar a repetir a proposta de Passos Manuel que queria o regresso a certas formas de sufrágio censitário. Por mim, restringiria os direitos de cidadania aos cumpridores dos deveres fiscais...
25 — Como analisa as relações entre Belém e S. Bento? Há um esfriamento natural entre Cavaco e Sócrates?
Os dois são a mesma coisa ideologicamente: disseram-se da esquerda moderna, invocaram Bernstein e têm programas de governamentalismo keynesiano, assim coincidindo com o que poderíamos qualificar como salazarismo democrático. Até porque herdaram do antigo regime esta mania de acordos neofeudais com as forças vivas, bancoburocráticas, naquilo que poderíamos qualificar como a direita dos interesses. É essa barganha a que damos o nome de social-democracia que é exactamente a mesma coisa do que socialismo democrático, onde o europeísmo é o novo D. Sebastião, mas onde as disparidades sociais e a injustiça são crescentes. Nenhum deles é capaz de um “new deal” de menos Estado e mais sociedade e ainda por cima são as duas cabeças das duas principais multinacionais partidárias da eurocracia...
26 — Estamos a caminhar a passos largos para as eleições norte-americanas. Uma vitória do partido democrata nas presidenciais de 2008 nos EUA pode significar um novo relacionamento entre Washington e a Europa?
Para mim, a república norte-americana é uma das mais belas construções políticas da nossa matriz civilizacional e ai das ideias liberais que perfilhamos se não assumirmos as raízes comuns para podermos construir o futuro em parceria. Julgo que poderermos avançar muito se o futuro presidente da república imperial compreender que o gnosticismo bushista, quando confundiu os interesses universais com os interesses norte-americanos, foi uma oportunidade perdida para o universalismo da esperança pós-soviética.
27 — Qual dos dois candidatos, Obama e McCain, servem melhor os interesses dos EUA e o relacionamento deste País com o Ocidente?
Não sou cidadão norte-americano e, quando muito, tenho solidariedade para com as preferências das comunidades portuguesas e luso-descendentes. E julgo que tradicionalmente estas alinham com os democratas...
28 — Como olha, hoje, para a União Europeia a 27?
Uma das mais belas construções políticas da humanidade, permitindo o sonho de uma Europa que vá da ilha do Corvo a Vladivostoque, assim se consigam superar os presentes dramas de renegociação do acordo comercial com a Rússia, dado que o de 1995 acabou em 2005. Daí estes bailados interventivos, entre o Kosovo e a Ossétia, quando não assumimos que a Rússia de Soljenitsine está a construir uma democracia e uma sociedade aberta e pluralista, mesmo que os entorses da personalização do poder e da bandocracia ainda estraguem o sonho. A alargamento a Leste, se não for entendido como um sucedâneo da guerra fria, pode levar a um investimento de paz e justiça que dá à nossa geração uma superioridade moral face às anteriores, as que transformaram guerras civis europeias em guerras mundiais. Ajudar o partido russo do humanismo laico e do humanismo cristão a vencer os atavismos antidemocráticos e antipluralistas é o verdadeiro fim daquela construção europeia que pretenda eliminar os imperialismos internos que transformaram esta bela ideia civilizacional em muitos segmentos de prisões de povos...
29 — Aprovado o Tratado de Lisboa, na sua opinião, vamos ter uma Europa a duas velocidades?
A ideia de caixa de velocidades representa o pior ds gnosticismos progressistas, aquele que diz termos todos os povos que percorrer uma via única, em direcção a certa estação terminal do fim da história, percorrendo as mesmas estações, mas com uns a irem mais avançados e outros em estações subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. Por mim, preferia não ir nesse comboio de descarrilamentos e ter não várias velocidades, mas várias formas de saudades de futuro.
30 — A ratificação teve um acidente de percurso com a Irlanda a dizer «não» ao Tratado de Lisboa. Este voto dos irlandeses representa o quê?
Para mim, representa a coragem dos irlandeses que conseguiram garantir da União Europeia o respeito pelas autonomias nacionais. Infelizmente, não têm força para transformar a Europa numa democracia de muitas democracias, contra a tentação do super-estado eurocrata.
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