a Sobre o tempo que passa: Luís Vaz, mais uma vez, pode falar sem que eu fale

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.10.08

Luís Vaz, mais uma vez, pode falar sem que eu fale


Ó vós, que sois secretários
das conciências reais,
que entre os homens estais
por senhores ordinários;
porque não pondes um freio
ao roubar que vai sem meio,
debaixo de bom governo?

...

Vereis uns, que no seu seio
cuidam que trazem Paris,
e querem com dous ceitis
fender anca pelo meio.
Vereis mancebinho de arte
com espada em talabarte;
não há mais Italiano.

...

Outros em cada teatro
por ofício lhe ouvireis
que se matarán con tres
y lo mismo harán com cuatro.
Prezam-se de dar respostas
com palavras bem compostas;
mas, se lhe meteis a mão,
na paz mostram coração,
na guerra mostram as costas:
porque "Aqui torce a porca o rabo".

...

Achareis rafeiro velho,
que se quer vender por galgo:
diz que o dinheiro é fidalgo,
que o sangue todo é vermelho.

...


Consciência que sobeja,
siso, com que o mundo reja,
mansidão outro que si;
mas que lobo está em ti,
metido em pele de oveja!
E sabem-no poucos.

Guardai-vos d'uns meus senhores,
que ainda compram e vendem;
uns que é certo que descendem
da geração de pastores;
mostram-se-vos bons amigos,
mas, se vos vêm em perigos,
escarram-vos nas paredes;

[Que dizeis duns, qu'as entranhas
lhe estão ardendo em cobiça?
E, se têm mando, a justiça
fazem de teias de aranhas,
com suas hipocrisias
que são de vós as espias?
Para os pequenos, uns Neros;
para os grandes, tudo feros.
Pois tu, parvo, não sabias
que "Lá vão leis, onde querem
cruzados"?

Mas tornando a uns enfadonhos
cujas cousas são notórias;
uns, que contam mil histórias
mais desmanchadas que sonhos;
uns, mais parvos que zamboas,
que estudam palavras boas,
[a que ignorancia os atiça;]
estes paguem por justiça,
que têm morto mil pessoas,
por vida de quanto quero

...

Ó tu, como me atarracas,
escudeiro de solia,
com bocais de fidalguia,
trazidos quase com vacas;
importuno a importunar,
morto por desenterrar
parentes que cheiram já!
....

Ó vós, que sois secretários
das conciências reais,
que entre os homens estais
por senhores ordinários;
porque não pondes um freio
ao roubar que vai sem meio,
debaixo de bom governo?
Pois um pedaço d'inferno
por pouco dinheiro alheio
se vende a Mouro e a Judeu

Porque a mente, afeiçoada
sempre à real dignidade,
vos faz julgar por bondade
a malícia desculpada.
Move a presença real
üa afeição natural,
que logo inclina ao juiz
a seu favor; e não diz
um rifão muito geral
que "O abade donde canta,
[daí janta"?