(in memoriam de Rui Palma Carlos, que aqui veio ao fim de Portugal e nos deixou, em surrealismo de 1977 , este quadro dito Libertação)
Os meus alunos e os meus filhos não são do tempo dos restos do Império que nunca foi o Quinto, quando alguns ainda diziam que podíamos visitar um tempo em que o tempo tinha parado, porque, por cá, ainda vivíamos antes de Bandung, mas também antes dos massacres do Ruanda, antes da guerra civil de Angola, antes de Mugabe, antes de Mandella.
Era o tempo em que ainda era ministro Joaquim da Silva Cunha, que fumava cachimbo e despachava, com pormenores de lápis atrás da orelha, uma qualquer construção de barragens lá para os lados da Namíbia, sem ceder à pressão dos carcamanos e a outras, incluindo as da compra do poder. Até desdenhava daquela que lhe fazia a bicha dos intelectuários, desses que são intelectuais porque foram ministros, tal como foram ministros porque todos diziam que eram intelectuais, mas sem que a inteligência se tivesse casado com a honra, porque mesmo em glosas de um quarto de hora antes de morrerem continuam a ser tão tratantes como sempre foram.
Era um tempo em que Lisboa vivia como se o Príncipe Regente ainda pudesse largar de barco do cais da Junqueira, com o Estado na bagagem de porão, sempre disponível para ocupar a colónia do Sacramento, para conquistar terreno na Amazónia, para poder contar com discursos feitos pelo Silvestre Pinheiro Ferreira, contra a oclocracia, ou com planos de reconstrução bancária do José da Silva Lisboa, para não ter que se dar razão a Weber, e ao protestantismo como a única ética possível para o dito capitalismo, o que vai do Oliveira e Costa ao Valle e Azevedo, onde nenhum deles é zeca nem diabo.
Alguns dos meus leitores que pensam ter horas certas, bem certinhas, quando lêem, com os olhos do respectivo a priori, pré-captando (donde veio preceito) e cum-captando (donde veio conceito), o tempo e o lugar de emissão deste meu blogue, sem admitirem que, por aqui, tudo é nove horas mais cedo, também nunca hão-de compreender como, de vez em quando, assim vir ao mais cedo é talvez poder andar, no tempo, antes do tempo, coisa que, contudo, apenas é admissível para os que, não tendo queda para a literatura de justificação do revisionismo, julgam que o futuro é tempo que ainda vale a pena conjugar.
Não é um acaso, mas apenas uma procura, a que, neste período, entre Obama eleito e o melão de Sócrates entreaberto, a que vou fazendo por esta ilha, pretensamente perdida. A tal que os administradores do império quiseram esquecer, a tal que os agentes da descolonização, do anti-rapidamente e em força, mais rapidamente se quiseram livrar dela, com o absurdo, entendível, de gonçalvistas promoverem partidos integracionistas face à Indonésia, enquanto nacionalistase super-direitistas iam traindo, cavando e dando às vilas diogo. Por isso me lembro da morte do Rui, lá no mês de Maio, para que não mais morra.
Porque, in medio, não estava a virtus, mas moderadíssimos e malandríssimos oficiais, de carreira ainda mais ambiciosa, que, usando o "divide et impera", com riscos pouco calculados, prenhes de especialismos em estratégia, apenas não ponderaram a hipótese de duzentas mil vidas, decepadas por maus cálculos de "intelligence".
Até nem faltaram sequer especialistas em importação de sandalosas iguarias, que não sabiam de poços de petróleo, nem entendiam que valeria a pena a soma de São Tomé com Timor, para a hipótese de um novo ministro das colónias que não tratasse apenas das contrapartidas dos casinos em omnipotência dita moral que é pior do que a outra. Pelo menos dava mais emprego do que o Macau do Stanley e outras afundações que são as únicas que julgam poder emitir adequadas certidões de patriotismo, porque, dos ostrácicos, nunca rezará a história, nem do futuro.
Portugal ainda era o erat e o tal erat era tão real que contá-lo, três décadas volvidas, pode parecer que soa a falsete. Mas o erat era mesmo em todo o lado, do mesmo modo, onde para fazermos a quarta classe sabíamos dos afluentes do Mondego e dos apeadeiros da Linha de Oeste, até que chegaram os que gritaram, e conseguiram, o nem mais um soldado para as colónias.
Os que traduziam o estilo de Jane Fonda com o gnóstico de Mao Tse Tung, pintando de vermelho e amarelo as paredes da gare marítima de Alcântara, enquanto outros, mais telúricos e dados a santinhos de barro e missal, viam filmes do Eisenstein e punham Cunhal no lugar de Nossa Senhora de Fátima. Mas a maior parte de tais outros nem sabia para que lado seguir, entre os que partiam para Franças de valise de cartão e os soldadinhos do adeus até ao meu regresso com o angola é nossa tatuado por cima do amor de mãe.
E foi assim que correu Abril num fazer coisas em estampido, no que, noutros lugares, onde o tempo havia sido tempo do seu próprio tempo, havia demorado séculos de guerras civis, de guerras mundiais, de guerras coloniais. Eu, pelo menos, tive a vantagem de ser um desses meninos que passou noites em claro a transformar, em escrita, poemas por cumprir e manifestos políticos de uma revolução a haver, enquanto se ouvia Zeca Afonso e Chico Buarque, se liam coisas da arca do Pessoa, assim postas nas pretensas obras completas da edição brasileira, ou se descobria a Cecília, dos Açores e do Brasil. Para, bem lusotropical, me preparar para a guerra que um dia tinha que vir, com dois anos de comissão em terras de malária, mísseis e missangas.
Por mim, que acabei por não vir à guerra, por não fugir para Paris, mas a ter que gerir o resultado de não ter havido guerras civis, guerras mundiais e guerras coloniais, apenas continuo a fingir que ainda posso desembarcar em Lifau e passar a Solor e Flores, sem fugir para o Ataúro.