a Sobre o tempo que passa: Eu, desde sempre processado como incorrecto, apoio Manuela Ferreira Leite, pessoa em quem nunca votarei, mesmo que Cristo volte a mergulhar no Tejo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

20.11.08

Eu, desde sempre processado como incorrecto, apoio Manuela Ferreira Leite, pessoa em quem nunca votarei, mesmo que Cristo volte a mergulhar no Tejo


Quem todos os dias olha o que resta da República dos Portugueses do outro lado do mundo e do outro lado da própria história, com um pouco de metapolítica e pouco lume da razão, compreende a pequenez em que nos vamos destroçando, face àquilo que escrevi no meu primeiro artigo de intervencionismo político, enquanto estudante universitário: somos um neofeudalismo que actua sobre uma anarquia ordenada. Infelizmente, aquilo que são as necessárias "sementes da revolta", título do meu segundo artigo no mesmo jornaleco semiclandestino e ciclostilado, que o director, muito matreiramente, passou a "sementes da revolução", perdem-se no processo selectivo dos compadres e das comadres das chamadas forças vivas.

O que se passou com o BCP e com o BPN, pequenas amostras do que foram os traseiros do cavaquistão, sobretudo a correria dos que consideraram que o importante não era ser  ministro, mas tê-lo sido, é directamente proporcional aos retiros soarentos para os restos coloniais de Macau e das fundações que, da sociedade de casino, de lá importámos e onde aconchegámos muitas finas flores do salazarismo, do marcelismo e do soarismo, a maior parte das quais não parece ser muito boa para cheirar.

Acresce que estas sucessões círculos concêntricos de neofeudalismos da casta bancoburocrática de sempre, assentes nos pactos de silêncio do rotativismo, espalha a estreiteza dos respectivos quintais a outros mundos, desde o jornalismo e comentarismo às placas giratórias das universidades e dos centros de carimbagem da intelectualidade, bem expressos nos abaixo-assinados com que apoiamos a lista de cartões de visita de um ou outro director que os supremos directores querem sanear. No fundo, no fundo, por todo o lado, das forças vivas, se espalha aquele odor a cadávares adiados com que impregnámos as ditas universidades privadas que, depois de falirem, parece que estão a lançar o processo de fragmentação junto das próprias universidades públicas.

É a toda esta sucessão de sinais de putrefacção que tenho chamado ditadura da incompetência, quando, como no crepúsculo da I República, regressam os bonzos, os endireitas e os canhotos. É por isso que, em resposta a um jornalista de Lisboa, sobre o caso MFL, recordei que estratégia, como aprendi no IDN, sempre foi  a arte de transformar as vulnerabilidades em potencialidades e, pelo contrário, de evitar que as potencialidades passem a vulnerabilidades. Apenas para concluir que, de tantos líderes anteriores, plenos de tacticismo, mas falhos de estratégia, o PSD, para mal da democracia, não  pode ter estratégia de comunicação, porque ainda anda à procura de estratégia de acção, que lhe permita superar o vazio de funcionalidade no actual sistema político.
 
Depois do período da gestão dos silêncios, que correspondeu a um momento de super-cavaquismo sem Cavaco, depressa se concluiu que o mesmo era pior emenda do que os sonetos de Menezes e de Santana, dado que as mensurabilidades opinativas reveladas pelas sondagens apontavam para um esvaziamento do partido em termos de apoios sociológicos. E as expectivas de muita comunicação social sobre MFL tinham a ver com a imagem que ela transmitiu de antiga ajudante de Cavaco, da ex-ministra tecnocrata que iria fazer de conselho de fiscalização de Teixeira dos Santos, vestida de Anti-Santana e de Anti-Menezes. Só que MFL tem genes de política desde os tempos do avô e do bisavô, bem como uma história de activismo e de solidariedade que lhe vem das próprias lutas estudantis, onde esteve sempre do lado da democracia. Só alguém mal-intencionado é que a pode colocar no lugar errado dos inimigos da democracia. Ou então, só alguém que não quer discutir o fundo da questão e prefere a pega de cernelha.

MFL ainda está na fase de personagem à procura de actor, ainda não estabeleceu devidamente o respectivo estilo como líder do principal partido da oposição. Primeiro, porque tem de se libertar do ausente-presente com quem sempre a comparam, Cavaco. Segundo, porque apanhou uma crise financeira internacional que a impediu de poder afivelar um discurso onde tem, indiscutivelmente,  mais autoridade do que o engenheiro da Beira Interior, formado na encerrada Independente. Terceiro, porque lançou pessoal político novo, como Paulo Rangel... Isto é, MFL ainda é um melão de que só puseram no prato as primeiras talhadas, um pouco massacradas pelos empurrões, até porque muitos ameaçavam que o PSD iria apresentar outra sobremesa, dita melancia, com uma coloração por fora e outra por dentro.

"Gaffe" é o Reagan ser apanhado a ameaçar a URSS em "off", o que não o impediu de ser o presidente do fim da guerra fria, mas também pode ser a do ministro Borrego a contar uma anedota sobre o alumínio e sair do governo para apresentar estudos para a confederação patronal sobre o novo aeroporto do Barrete Verde...  A ironia é coisa que não se adequa ao ritmo da "imagem, sondagem e sacanagem", a tríade que, segundo Manuel Alegre, marca a política à portuguesa...

Ao contrário do que parece, eu que costumo ser um crítico frontal de MFL, compreendi perfeitamente o que ela quis dizer e julgo que, se ela usar o tempo de antena a que tem direito, conseguirá comunicar devidamente a mensagem. Nem o avô dela, o ilustre José Eugénio Dias
Ferreira, o da greve académica de 1907, que, se quisesse, podia ser o chefe do 28 de Maio em vez de Salazar, deixaria de dizer que vivemos num período de degenerescência democrática, e que esse ambiente propicia a ilusão de uma suspensão da política. Mas também me lembro que um António Sérgio, em pleno crepúsculo da I República, chegou a lançar a ideia de uma espécie de ditadura à romana, onde, durante um período curto, se fariam as reformas que a partidocracia emperrava.

Lembro-me que Ramalho Eanes tentou coisa sucedânea com três governos presidenciais e que Mário Soares, por duas vezes, provocou a suspensão com um governo PS com ministros do CDS, por causa do FMI, e, depois, com um governo do Bloco Central, por causa da CEE. Mas o que tenho a certeza é que MFL não reeditou a proposta do Bloco Central, na linha do proposto no primeiro discurso de regresso de Paulo Pedroso. Pelo menos, eu percebi que ela estava a dizer que José Sócrates tinha entrado numa encruzilhada de conflito com as forças vivas e que, no
respectivo discurso, quase parecia que precisava de não ter partidos e oposição, sindicatos e patrões, para que o deixassem trabalhar, nem que seja como caixeiro viajante dos Sá Couto magalhanizados. Por outras palavras, compreendi a suprema ironia: MFL estava a fazer uma autocrítica e a denunciar a memória da maioria absoluta do cavaquistão, quando este mostrava o estilo que agora Sócrates parece assumir.

Em política o que parece é, e a ironia faz parte da arte literária e não do discurso eficaz a que está condenado o político. O caso mais próximo que conheço, no PSD, foi o de Marcelo Rebelo de Sousa comunicar que só iria disputar a presidência do partido quando Cristo voltasse à terra...