A minha civilização que escolheu Obama é exactamente a mesma que inventou o totalitarismo. Porque totalitarismo tem a marca registada "made in Ocidente", desde a puritana república dos santos de Cromwell aos mais recentes genocídios balcânicos. Por isso quero seguir os exemplos que vão de mestre Agostinho, da Travessa do Abarracamento de Peniche, ao senhor Padre Felgueiras, que, depois de Cernache, volta a ser meu vizinho.
Acordei para escrever o que não foi fantasma, mas sinal de acaso procurado. Acordei doendo e, na memória do sofrimento, por cima das folhas do meu cadastro, palavra a palavra, vou escrevendo Obama, pensando na história da senhora de 106 anos que votou nele, confirmando que a verdadeira libertação só é possível quando a liberdade se assume como uma conquista, quando, gotejando e gotejando, conseguimos espremer o escravo que trazemos, cada um, dentro de nós, quando nos assumimos como o centro do mundo e vamos à própria raiz da dor. A culpa da tirania reside quase sempre nos escravos que não assumem a necessária revolta de escravos e preferem a comodidade da "servitude volontaire", servida em pratos de lentilhas, louvores de jornal oficial ou elogio de compadre no corredor do chefe. Porque, ponta com ponta, se vai refazendo o modelo, não o da conspirata, mas do mero ajuntamento de agregados interesses em redes de pressão e cunha, pintadas de música celestial...
Obama. E penso no que deve ser minha missão. E recordo as matérias que aqui vou leccionando, tão orgulhosamente professor de direito quanto o professor Obama, de direito também. Recordo as duas últimas capas dos dois últimos livros de princípios de direito político que escrevi, onde principes tem mesmo a ver com Montesquieu e droit politique mais principes é mesmo o subtítulo do Contrat de Rousseau. E penso que tenho como missão o acaso procurado de professor de liberdade. Penso na capa número um do livro que trago na mochila, retratando o princípio da armilar, de D. João II a dar a D. Manuel o que é esfera, o que é espera e o que é esperança, nesse esotérico lusíada que me marca, que é caravela, que é Erasmo, que é Pedro Fernandes Queirós e terra australia do espírito santo, onde só por acréscimo é que alguns fazem contabilidades quanto ao pioneirismo das viagens.
Penso na segunda capa, onde a mulher que se entroniza, a constituição, muito à Sequeira, vem de azul e branco que sempre foram as minhas cores, mesmo sem coroa, sobretudo sem a coroa fechada com que traduzimos em calão a monarquia habsburga, contrária ao nosso reino sem soberania e sem Estado. Penso na deusa da liberdade. Ensino liberdade. Ensino escolástica, ligada a Cícero, ligada ao estoicismo, ligada a Paulo, ligada a Suárez, a Molina e por aí fora, humanismo, jusracionalismo, iluminismo, as pastilhas que resistiram à ocupação do positivismo, os neokantianos de Stammler a Ortega, os neo-escolásticos de Leão XIII a Possenti, os maçons como Montesquieu, como Locke, ou como Kant, com as suas revoluções atlânticas demoliberais, assim somando humanismos...
Continuo a pensar liberdade como memória do sofrimento, Subscrevo a parábola do primeiro sermão de Obama para tanto peixe que não pescou mesmo nada de um discurso onde mais do que a oferta de peixes se propunha que voltássemos a aprender a pescar. E lá vem Moses Ben Maimon, também ele judeu entre os árabes, Dá um peixe a um homem e dás-lhe comida para um dia; ensina um homem a pescar e dás-lhe comida para toda a vida.
Volto a Montaigne, volto a Étienne de la Boétie, volto a Erasmo, volto a revoltar-me contra todos os pides e neopides, mesmo os que se disfarçam com glosas a discursos alienígenas, volto a revoltar-me, revolto-me sempre, sobretudo contra os mesmos neopides vestidos de tecnocratas que não sabem que a poesia é mais verdadeira do que que a história. Aqui é mesmo Lorosae, é sol nascente, é Oceania, "terra austrália do espírito santo". Memória de sofrimento. Libertação. É por este acaso procurado que o sermão de Obama serviu para recordar-me e crescer por dentro.
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