Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
6.11.08
(dedicadas ao velho e falecido amigo Moisés do Amaral, quando o Jamor não rimava com Timor)
Muitos estranham que nada até agora tenha dito sobre a vida política dos timorenses, eu que comento apaixonadamente a da minha identidade, assim exercitando a cidadania, assim sofrendo, no lombo, a persiganga de todos os que não assumem a democracia como institucionalização de conflitos, de todos quantos preferem o louvaminheirismo da personalização do poder, esquecendo que uma "polis" não é uma empresa, uma "casa", onde haja um patrão, um pai, um déspota (de "oikos despote"), ou um dono (de "dominus"). Não estranhem que aqui não vos inunde de pormenores sobre FRETILIN contra AMP e vice-versa, mas não faço parte daquele bando de revolucionários frustrados que aundo chega a uma ex-colónia se assume como colonizador neocolonialista, nem sequer respeitando a real independência dos que se sentem e são filhos de boa gente. A política apenas surge quando saímos do doméstico e vamos para a praça pública, porque inventámos a política para deixarmos de ter um dono. E porque acabamos com a política quando voltamos ao déspota. Mesmo que seja nas políticas de outras cenas, incluindo as académicas.
Acresce que, por cá, metade das gentes das minhas turmas são de um lado e a outra metade, do outro e logo, sendo professor de ambas, seria estúpido que fizesse interferência de na vida interna de uma pátria que tem mais do que direito a procurar o seu próprio caminho. Ou que fosse tão assexuado que omitisse os subsolos filosóficos que me apaixonam como adepto da liberdade, das libertações nacionais ou da religião secular da democracia, sem esquecer a missão do Estado de Direito, como Estado de Justiça. Sobretudo numa semente de escola de direito que tem de ter uma missão e uma deontologia activista.
Mas posso, não quero nem devo dizer qualquer coisa que se confunda com interferência na vida interna de uma pátria irmã que quero aprender a ama. Primeiro, aconselho aos lusos que não embarcam em jangadas de pedra que descodifiquem os blogues apaixonados que seleccionam a informação sobre Timor e que a transmitem para o espaço da lusofonia, misturando muita teoria da conspiração com a dor de terem perdido as eleições ou a euforia de as terem vencido. E não misturem togas, balandraus ou becas com palmeiras, mangais e ramelaus.
Por aqui, uma personalização do poder do modelo afro-luso talvez seja impossível, por tantos liurais e datos. Mesmo nos tempos do velho Conselho que precedeu a Constituinte, um dia houve em que o candidato de Xanana, que já era o Ramos Horta, perdeu nas urnas contra Manel Carrascalão. E quando Alkatari foi substituído como foi, apenas se confirma que, por cá, pluralismo é efectividade que, dificilmente, será destruído por qualquer verticalismo hierarquista, ou pela ilusão de um construtivismo programático, liderado por um partido disciplinado pelos quadros e pela propaganda.
As forças federadas que, por enquanto, se enfrentam não cabem em bipolarizações, como aí alguns reinventam, em torno dos eixos direita/esquerda, teocráticos/racionalistas ou entre amigos da potência x contra amigos da potência y, de acordo com as conversatas de sofá, dos que se passeiam em má língua entre a esplanada do City e o bar do Hotel Timor, com resmas de espionite mal digerida e de ciência de ouvida mal escutada. Comigo não contem para essa circulação de pretensas elites missionárias, entre os que aqui procuram a revolução perdida ou o império que não houve. Como todos os que me conhecem por dentro sabem, prefiro o poder dos sem poder poder e um império anti-império, que não seja deste mundo.
Preferia, por exemplo, que estivesse disponível um dicionário de português-tétum e não apenas o magnífico texto de Luís Costa, sobre o tétum-português, porque quando recorro aos que se dizem de inglês-tétum, acontece que metade das palavras de tétum aí incluídas são português que dizemos arcaico, correndo o risco de ficar destruída a coisa mais bela destas paragens que é a utilização da metáfora para a descrição do mundo.
É por isso que subscrevo as afirmações de certos eclesiásticos sobre a impossibilidade de aqui aplicarmos as regras do método de Descartes. E faço-o, não para louvar a hipótese absurda de instauração de uma qualquer república teocrática, o que seria anticonstitucional, mas para subscrever o laicismo de São Tomás e de Francisco Suárez, e concluir como, com as nossas lentes de contacto conceituais, somos capazes de embaciar a pluralidade de uma entidade simultaneamente panteísta, católica, animista, democrática, feudal, pós-moderna e pré-estadual, a quem não serve o pronto-a-vestir de certa modernidade fora de moda, por mais que se esforcem o supermercados de Singapura, os antropólogos das escolas coloniais e os politólogos desenvolvimentistas, que aqui tentam imitar o Corte Inglés, a democracia em comprimido das "foundations" e dos "compounds", bem como o Bill Gates do troca o passo.
PS: Como não sou dos tolos, que sentenciam sem pisar as poças de água da chuva que aqui desabou, aproveitou esta manhã de sexta sem aulas para, depois de longa volta de bicicleta até ao mercado do farol, para ir aos tolos que vão ao "Doulos". Gostei. Do resultado da tal ONG que vende livros num barco de 1914. Muita criançada das escolas, muitas freirinhas, tudo em visita, e eu também. A primeira prateleira desta feira do livro navegante dizia tudo: uma acção missionária de uma qualquer igreja protestante, muito de "speak english". Livro caríssimo para timorense, barato cá para mim. Abasteci-me. ONGs são assim: sabem pescar nas águas dos subsídios do mundialismo, para venderem os respectivos sermões. Até as universidades já estão assim "o-ene-gizadas", como estão "onugizadas", com especialistas em Timor só porque aqui conferenciam em acções de formação numa das caves do ar condicionado e lagosta ao fim da tarde na Praia da Areia Branca. Sou dos tolos que fui ao "Doulos". E ainda por cima gostei. Gostava mais do navio "Sagres", ou de uma barcoleta dita "Descartes", ou de uma caravela chamada "Loyola". Venham todos, timorenses precisam desta pluralidade de pertenças...
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