a Sobre o tempo que passa: Em torno da lei positiva ou do Cilindro de Ciro. De Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.5.10

Em torno da lei positiva ou do Cilindro de Ciro. De Teresa Vieira



Creio que para compreendermos a maneira diferenciada como cada individuo se situa perante a lei, teremos de percorrer os múltiplos percursos do Direito como base para a aceitação livre da lei jurídica.

Acredito que o direito só participará na reinvenção da sociedade se souber reinventar-se.

Tenha-se em conta que nenhuma lei é válida para todos os tempos e para todas as situações.

O próprio direito tem de fermentar espaços de legitimidade social e para isso tem de entender os paradoxos. Também o direito não se pode identificar em excesso com o poder político a fim de que não perca o cerne da sua autoridade.

Recorde-se que Rosanvallon dizia que o Estado vai ocupando o espaço abandonado por uma sociedade muda. E acrescento, que dever ser nosso o recriar de um direito e de uma sociedade que fomentem os espaços de autonomia solidária, sendo que esta não é muda, nem de «snacks», com muito balcão e poucas mesas.

Não se admite que as pessoas possam estar condenadas a circular ao lado umas das outras a olhar as montras como numa prisão que controla e vigia o tempo de uma vida de impasses sem alternativa.

Só as sociedades assim construídas e assim “sossegadas” é que se sentem inseguras e nem sequer irreconhecíveis nas leis que as regulam.

Hannah Arendt chamou-nos bem a atenção para o poder que contém a violência se esta desempenha a mesma função que a autoridade, já que então violência era o mesmo que autoridade.

E nos tempos que vão correndo, os acima descritos como “sossegados” são portadores de neutrões de infelicidades, que podem disparar desligados de qualquer culpabilidade face à sua própria quota de responsabilidade que afinal nunca realizaram ter.

Ora, também aqui, o disfuncionamento do direito, se as leis não se adequarem ao seu lugar estruturante da sociedade, podem fazer eclipsar o fundamento último e primeiro da sua existência ordenativa e não só.

Castanheira Neves bem referia a «intenção reguladora» que devia apresentar a lei de forma a permitir ao indivíduo situar-se em relação à sua maneira de viver e de se comportar.

Como refere nas suas aulas o Professor Bronze «o direito não é, vai sendo» e diríamos que neste dinamismo se aperfeiçoa a moral que não é de betão e se recorda também a memória suculenta da ética e só assim, atento à mutação social e cultural, o direito fará com que a sociedade redefina valores.

Gostaria que chegassem os dias em que se não tatuam os corpos por se não poder escrever no corpo social.

Afinal, à lei, também compete garantir uma comunicação contra a indiferença e a intolerância que muitas vezes dispersam o indivíduo de entender a singularidade dos outros.

A vida social é um magma que também se exprime em normas, mas só assumindo-nos como seres livres, sujeitos de direitos e deveres, o que em si é uma experiência universal, é que a partir daí se atenua a tensão invisível de sermos os espectadores da nossa própria destruição.

Um texto escrito em Seteais por Yourcenar iniciava-se assim:

Um conto das Mil e Uma Noites diz-nos que a Terra e os animais tremeram no dia em que Deus criou o Homem (…) bem sabemos melhor que o contista árabe da Idade Média até que ponto a Terra e os animais tinham razão para tremer.

M. Teresa B. Vieira

Maio 2010

Sec.XXI