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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.10.04

Indisciplinado, irreverente e inadaptado ao servilismo

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Em Portugal, a chamada tolerância, isto é, a possibilidade que temos de dialogar com os adversários no espaço público, bem como a própria democracia pluralista e representativa, não constituem uma concessão de alguns políticos que se consideram a si mesmos como os pais da democracia. A democracia que temos vivido, construído, reconstruído e contestado não nos veio através de uma qualquer carta constitucional emitida pelo absolutismo de um qualquer fundador do regime. Até poderíamos dizer que a presente pós-revolução foi imediata consequência da contra-revolução, tal como esta derivou mais da revolução do que do regime que esta derrubara.

Ao contrário do que começa a ser moda no discurso de certos pretensos fazedores de opinião, a chamada direita constituiu partidos e movimentos e até chegou ao poder, não por concessão da esquerda, mas por direito que conquistou através do poder de sufrágio, depois de se praticar a liberdade de expressão, a liberdade de reunião e a liberdade de associação, muitas vezes, através de uma resistência viril, onde até não falataram actos de violência, contra a intolerância revolucionária.



O Dr. Mário Soares comandou a revolta da Alameda porque o Senhor D. Francisco Maria da Silva e o sr. cónego Eduardo Melo convocaram manifestações em Braga. O Dr. Mário Soares, que viveu na ilusão do frentismo popular até ao fim do primeiro trimestre de 1975, foi impulsionado para apostar no pluralismo só depois da questão da anti-unicidade sindical, liderada por Salgado Zenha, e da defesa do jornal República, assumida por Raúl Rego, e graças ao apoio de Frank Carlucci e Donald Rumsfeld.

Os católicos portugueses, liderados pelos bispos-condestáveis, são uma das principais fundações do regime democrático português, conforme foi delineado pela aliança vencedora do 25 de Novembro de 1975. Não existiria PPD/PSD se os "meninos do bispo", isto é, de D. António Ferreira Gomes, se não assumissem à maneira de Francisco Sá Carneiro. Julgo que os católicos deste regime não precisam de pedir certificados de bom comportamento democrático aos actuais historiadores oficiais do regime que, nesses anos de libertação, nos queriam conduzir para as experiências albanesas, maoístas ou polpotianas.

O confusionismo gerado pela questão Buttiglione está a fazer a renascer certa perspectiva pombalina e jacobina que conecebe um militante cristão como um inevitável fundamentalista. Ainda noutro dia fui alcunhado de pretenso liberal porque disse que grande parte das nossas instituições de direito civil derivam do plurissecular conúbio com o direito canónico, incluindo o casamento. Aliás, até poderia dizer, sem qualquer originalidade, que o próprio Estado Laico é um substituto monoteísta, tal como as duas instituições que o tornam possível, a soberania e a representação são oriundas da teologia.

Mais provocatoriamente, poderia dizer que os factores democráticos da formação de Portugal derivam dos concílios da monarquia visigótica. Que a ideia de soberania popular é, sobretudo, um produto do processo do tomismo e, fundamentalmente da neo-escolástica peninsular, principalmente das teorizações de Francisco de Vitória e de Francisco Suárez. Até acrescentaria que parte das teses de Rousseau, no que ele tem de perene, derivam do "Tractatus Theologico-Politicus" do judeu Bento Espinosa. E que muitas das tolices de Lenine são uma má adaptação dos modelos dos "velhos crentes", onde a própria estrela vermelha deriva da estrela de Belém.

Todas estas pretensas tretas talvez não caibam na cabecinha de ex-maoístas que se democratizaram rapidamente e em força ao fazerem más traduções das excelentes teorias da liberdade e da democracia do recente mundo anglo-americano. Porque importaram o conteúdo doutrinário de tais posturas metendo-o no estilo e na forma típicas da mentalidade de extrema-esquerda, não admirando que andem por aí protestantizando o catolicismo ou inquisitorializando a democracia.



Assim, não compreendem a origem da democracia-cristã, de Le Sillon a Luigi Sturzo e logo qualificam João Paulo II e Rocco Buttiglione como ultra-reacionários e ultra-conservadores, gente da bárbara extrema-direita fundamentalista. Por outras palavras, qualificam o papa que liquidou o integrismo lefebvriano e a marxistóide teologia da libertação com a estreiteza dos que querem continuar a conjugar os verbos de "Syllabus" e do "Papa-Rei".


A escala mental do dogmatismo é bastante semelhante à da ignorância que não é douta. O simplicismo dos primários que tudo reduzem ao preto e branco não consegue admitir a complexidade do arco-iris. E tudo se agrava neste Portugalório onde a mentalidade de quintal faz agravar os vícios do corporativismo, do doutorismo, do fidalguismo e do sectarismo, onde muitos escrevem as linhas justas daquilo que decretam como a direita, o centro e a esquerda.



Depois, até exigem autorizações eclesiásticas, com o devido "nihil obstat" para que cada se possa declarar desta ou daquela posição. Por exemplo, quem como eu se diz quintimperialista, devoto de Agostinho e Pascoaes, corro o risco de ser pretenso, só porque não presto menagem a assinados maçons que pensam ter o poder de determinar quem pode citar e invocar tais mestres, só porque pensaram atravessar a via do iniciático e têm os segredos de tal ritual. E nem sequer me posso declarar pessoano sem pedir autorização para tal ao presidente da câmara municipal de Lisboa que tem poderes para nomear directores da Casa-Museu do poeta, os quais, em nome desse decretino qualificativo, se arrogam como supremas autoridades nas interpretações políticas e literárias dos escritos guradados na arca do amigo de António Ferro.

Se, por outro lado, me digo liberal, logo me acusam de nunca ter ido a Oxford, de não sido aluno do mestrado do Doutor Espada, ou de não ser suficientemente ateu ou agnóstico, ou descendente, primo ou afim de um qualquer desses vultos do devorismo ou do rotativismo. Aliás, ai de mim, que sou um confessado admirador do Padre Casimiro, de António Ribeiro Saraiva e do Visconde de Santarém e que elogio integralistas como Sardinha ou Luís de Almeida Braga.



A intolerância é tanto que não tardará que proponham o meu internamento imediato num desses centros de desintoxicação de ideias. Qualquer dia, até posso ser demitido porque aqui tenho verberado a maneira como os reponsáveis pelo nosso ensino superior têm conduzido as questões. Mas seria ridículo que um Ministro ou um Secretário de Estado concluíssem pela indisciplina, irreverente e grave conduta, que revela, de facto, impossibilidade de adaptação às exigências da função que exerce, só porque tenho escrito o que penso, mesmo contra um ministro de 1962 que assim demitiu um professor catedrático e que agora sentencia todos os dias o que deve-ser uma universidade e um professor.