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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.10.04

Os desvios antidemocráticos dos pretensos democratas



O caso Buttiglione e assinatura do Tratado da União Europeia constituíram excelentes reveladores dos estados de alma dos nossos rotativos comandantes da partidocracia, Presidente da República e ex-candidatos a Presidente da República incluídos. Comecemos por estes últimos, especialmente pelos argumentos de Diogo Freitas do Amaral, segundo os quais Rocco Buttiglione não tinha condições para exercer as funções de comissário europeu devido às respectivas posições sobre a homossexualidade e a visão da mulher no casamento, porque tais perspectivas ofenderiam tratados europeus contra a não discriminação sexual.

Não temos os pergaminhos teológicos do ex-presidente da União Europeia das Democracias-Cristãs e, muito menos, nos queremos imiscuir nas polémicas de sacristia que o dito cujo tem com o movimento "Comunhão e Libertação", nessa quase reedição das divergências de Salazar face a João XXIII, pelo que nos absteremos de considerar qual dos dois, nesse domínio de relações com o transcendente, é mais reaccionário ou mais progressista. Diremos apenas que, no plano político, seguindo o actual raciocínio de Diogo Freitas do Amaral, nunca ele, como anti-socialista, poderia ter sido ministro de um regime constitucionalmente socialista, ter fundado um partido democrata-cristão, ou ser líder partidário num regime contra cuja Constituição ele tinha corajosamente votado.



Se o que Diogo Freitas do Amaral proclamou corresponde ao que ele, na verdade, pensa, somos obrigados a concluir que o antigo líder partidário tem um entendimento intolerante da tolerância, porque quer fazer aos outros o que os conselheiros da revolução abrilistas não lhe fizeram a ele. Até poderíamos concluir que o respectivo centrismo reúne o que há de mais intolerante na esquerda e na direita. Apenas espero que os meus ouvidos estivessem com cêra a mais e que a culpa tenha sido minha, pelas dificuldades de captação divinal.

Espero também ter ouvido mal o que foi declarado, hoje, pelo Primeiro-Ministro de Portugal em Roma, sobre a circunstância de o nosso governo ir organizar uma campanha de propaganda oficial pelo Tratado Constitucional europeu, visando esclarecer o povo para este possa votar a favor do mesmo. Ou que o Presidente da República possa apelar à participação dos portugueses, para estes aprovarem o Tratado, naquilo a que dão o vergonhoso nome de discussão séria da Europa, em nome dos princípios do debate e da cidadania.



Se assim for, passámos a viver em verdadeiro estado de sítio democrático. Porque, mesmo que Pedro Santana Lopes, Jorge Sampaio, José Sócrates e Paulo Portas se entendam, eles não são os donos da democracia. Mesmo que oitenta por cento das forças políticas portuguesas sejam unânimes, o contraditório tem de existir e um referendo ainda não é o mesmo do que era um plebiscito na URSS ou do que foi o plebiscito que aprovou a Constituição de 1933. Se continuar este propagandismo, onde os jogadores são os próprios árbitros, insinuando-se que os outros, os que duvidam ou estão contra ao presente tratado, são maus europeus e , logo, maus portugueses, ficamos sem saber para que serviu o 25 de Abril. Ou então, temos que pedir ajuda a instituições internacionais que aqui venham impor um acto referendário que obedeça ao princípio onusiano das eleições "fair and free". Que o ex-presidente Carter, depois de controlar o acto eleitoral no Burkina Fasso dê aqui uma saltada para sugerir que se acabe com esta bombochata que se anuncia.

A pretensa tolerância intolerante, ou o anti-dogmatismo neo-dogmático, poderá até determinar, misturando os princípios de Diogo Freitas do Amaral com os entusiasmos discursivos de Pedro Santana Lopes e Jorge Sampaio, que:
- ninguém poderá ser político patriota, caso não subscreva o Tratado Constitucional europeu;
-ninguém pode ter princípios religiosos num Estado Laico;
-ninguém pode ser liberal num regime socialista;
-ninguém pode ser socialista num regime liberal.

Tenham juízo e sejam democratas pluralistas. Quem é do contra não é traidor à pátria nem a anti-nação. Ou então façam uma lei como a de Salazar, dizendo que os que se abstiveram serão considerados apoiantes do tratado em causa. Mas se, em vez de Salazar, quiserem ser como os partidários de Afonso Costa, façam como nas primeiras eleições da I República, dispensem os cidadãos da ida às urnas nos círculos onde não se apresentar a oposição. Aqui d'el rei!.. Oh! da guarda!