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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

3.11.04

Kerry, Bush e Viriato



Kerry perde, vence a América profunda, rural, protestante e providencialista, aquela que acredita num encontro imediato com o destino manifesto, onde a terra de promissão continua a ser comandada pelas pradarias selvagens das puritanas gentes que não viram o DVD que o "Expresso" distribuiu. E lá ficam sem adjectivos os que qualificam João Paulo II como ultra-conservador, porque o papista J. F. Kerry estava bem mais à esquerda do que George W. Bush, naturalmente, ainda mais da ultra-direita que o bispo de Roma. Os que acreditaram no democrata como salvador do planeta, com molho Heinz, e como o factor externo capaz de substituir, na gestão do processo político português, a nossa vontade própria, têm, naturalmente, de concluir que, mais uma vez, não foi desta que chegou o D. Sebastião, capaz de voltar a dar entusiasmo às análises de Mário Soares no circuito fechado do respectivo conceito de sociedade aberta.

Porque não sou cidadão da república norte-americana, nem súbdito mental do império global que a respectiva faceta de superpotência gerou, olhei a pugna eleitoral recente como um processo que me era estranho, mas ao qual, infelizmente, não podia ser alheio. Contudo, preferia Kerry, porque sendo velho conservador, não gosto de neoconservadores e fui muito influenciado pelos artigos recentes de Pat Buchanan. Tenho agora de concluir como nós, portugueses, já estamos interiormente manietados pela insensível colonização que tal república imperial vai semeando.



Mais do que o peso financeiro ou das armas, sinto-me comprimido pela "american way of thinking" que se transformou num padrão que quase todos os fabricantes de símbolos da nossa praça vão identificando com a modernidade, o progresso, a felicidade e a ciência. Os comentadores de obra feita e os fazedores de opinião desta nossa democratura até terminologicamente mostram essa filiação e quando pensam que pensam revelam quão fundo foi essa lavagem dos respectivos receptáculos mentais. Transformados em involuntários agentes colonizadores desse novo poder global, ei-los que contribuem para o apagamento das memórias que nos davam a emoção de sermos autónomos.

Muitos não reparam que qualquer cultura, quando se sente ameaçada pela extinção, tem a tentação de renascer pela via daquilo que o centro colonizador logo qualifica como fundamentalismo e que este, quando sai dos estreitos limites do mero exercício intelectual ou educativo, pode ter a tentação de recorrer ao próprio terrorismo. Quando se intensifica o imperialismo e o colonialismo, as vítimas do processo tendem a gerar uma reacção de sinal contrário, onde a postura dos chamados vencidos tende a ser directamente proporcional à violência exercida pelos vencedores. E onde os espaços físicos e mentais dos que ficam dependentes do centro imperial tanto passam a províncias (isto é, de terra vencida, de "vincere", etimologicamente falando) como a regiões (isto é, de terra regida, de "regere").





Como português antigo, começo a temer que ressurja o instinto de Viriato de uma Lusitânia libertável, até porque quis que Kerry se transformasse num sucedâneo de Sertório. Não que eu sinta a ameaça de legiões invasoras, dado que, por enquanto, apenas se manifestam inúmeros candidatos ao colaboracionismo, desde as elites que querem ser funcionários do poder exógeno, como o foram Cristóvão de Moura e Miguel de Vasconcelos, aos que apenas o fazem à maneira dos eclesiásticos D. Jerónimo Osório ou Frei Bartolomeu dos Mártires, que, padecendo de pluralidade de pertenças, acabam por dar preferências à lealdade supra-nacional do império espirutual.

Prefiro continuar a pugnar pela resistência da lusitana antiga liberdade, apoiando D. António Prior do Crato, mesmo sabendo da sua inevitável falta de potência, mantendo a ideia de lealdade de Febo Moniz ou conspirando nos falsos D. Sebastião ou através do Manuelinho de Évora, contra os "ministros do reino por vontade estranha".