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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.12.04

Novas palavras do nascer de novo



O dia que há-de ser quando vieres para sempre e quando, contigo, mais uma vez, voltarmos a estar, para podermos ser para sempre, longe do longe, perto do mar, à sombra da pedra, na raiz da terra.

Sei que apenas queria o impossível de um breve intervalo, sem agenda. Que todo o tempo parasse e que o todo nos desse um tempo sem tempo, um mar azul de espuma branca.

Queria um tempo que, sem porquê, perdi e nos perdeu. Que, na sombra do dia que tarda, na tarde do dia que será para sempre, tuas mãos pedissem que minhas mãos te dessem o calor da eternidade, na cinza quente de um dia que tem de ser.





Sim, à sombra da pedra, num templo de areia fina, na brasa de um dia que não se apague, na concha de teu colo, diante de um sol que se não porá, dando fogo às trevas que sitiam a lembrança, para que a penumbra nos não vença.

Sim, o tempo que foi num dia que há-de ser, mais uma vez, vivido. Um dia qualquer que, de propósito, não registarei, quando voltar a gravar em verso a viagem de mãos que hão-de cumprir esse medo que nos proíbe.



Sim, nessa viagem que não terá regresso, nessa verdade de podermos ser, quando as mãos sustiverem o intervalo da vertigem, seremos, para sempre, a lenta procura de um navio que não vai parar.

Porque parar seria perder-nos, seria sabermos que um qualquer adeus seria de vez, sem amanhã, sem espera. E não diremos jamais esse não sermos. Serei sempre, mesmo diante do frio das noites que nos doam. E ficarão, para sempre, as pequenas vagas batendo mornas nos longos cais de pedra das chegadas, sem partidas. Ficará eterno o prometido barco que nos há-de levar para o outro lado do mar. Ficará, para sempre, o infinito a que nos demos.



Mas a procura que cada um vai fazendo desse além de nós, dentro de nós, continua a doer na brevidade das vidas que vão seguindo. Porque a razão das coisas contabilizadas nos dita desassossego. Mas, vivendo quem somos, pelo sonho, resistimos. E até fingimos esquecer esse afã de não haver sol sob os umbrais e de haver noites de magia sem temermos o vazio de longe estarmos. Porque doem vidas cheias de âncoras procuradas que nos vão não deixando chegar aos sítios com lugar que havemos de ser e estar.

Pode haver tempo para o tempo da verdade. E fogo que fogueie a noite. E palavras que já não doam a conjugar. E tempo que nos dê tempo. E não mais diremos que chegou antes, que chegou depois, que chegou sem sempre.



Porque há mar demais à nossa beira. E um novo tempo sem tempo em nosso tempo. Um desejo secreto de apetecer dizer que amanhã terá de ser, sem as fantasias dos impossíveis, sem esses sítios sem pedra onde nunca se pode estar.

Apetecia dizer que amanhã poderíamos dar tempo ao tempo do não-tempo, para que um breve momento que nos dê o sempre, de quem somos.

Que as minhas mãos em tuas mãos vivam a tal viagem por cumprir. Que as mãos, nossas,
sejam navios ousados que novo mar nos descubram. Que, nossas, as mãos nos dêem mansos sulcos, mais fundos, ainda, e sítios de sermos..



Para conjugarmos por fim o verbo mar e dizermos sem medo o que tememos. Que, de mar a mar, seja possível não mais parar de amarar.

Corpo diante de corpo, dia de sol, na frente do mar, corpo com sítio, vencendo o frio da noite que, ferindo, nos agonia. Para contigo, para sempre, viajar, sem que um qualquer horário proíba, sem que um simples silvo sustenha, sem que a memória antecipe a dor do remorso.

Apetecia suspender meu tempo, ter, de novo, tempo, no tempo certo. E há palavras em sangue que me prendem. Palavras por dentro, bem dentro. Palavras que, dentro, ainda me prendem.

Sou aqui, em meu sítio sem sítio me sustenho, o verso me dói, o verso me lembra, aqui, à beira de quem sonho, diante de quem somos. Aqui onde me sonho, na breve concha da praia primeira dos meus dias, da praia de sempre, à sombra da pedra quente, sem que o vento me traga memória de revolta, sem que o vento me recorde solidão. Sim, diante de meu sonho, diante de quem fui e do tempo para onde vou.

Sim, eu sei que ambos sabemos a cor da esperança, desse tempo que há-de ser.


(poema de há muito, palavras de sempre, que apetecem publicar, para ti, porque há
sem palavras, há mãos, tuas, minhas, olhos, meus, teus, beijos, fundos, sempre)