a Sobre o tempo que passa: <span style="font-family:georgia;color:red;">Roubo, mas faço</span>

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.12.04

Roubo, mas faço



Nesta fábula do politiquês santanal, onde, afinal, não há o milagre da multiplicação dos pães, não é quem distribui que dá. Ninguém dá nada a ninguém. Engana-se, pois, quem pensa que um Estado é mais do que nós, que ele é um qualquer Senhor Ele que pode ser nosso benfeitor. O Estado apenas é feito de nós mesmos, o Estado somos nós, e o dito apenas pode dar aquilo que nos pertence, aquilo que tira a uns para dar a outros. Logo, só quando cada um de nós for democrata é que haverá efectiva democracia. Por outras palavras, só quando quem pagar puder decidir é que acabarão as derrapagens.



País tão triste, este, o que espera as solenes palavras dos excelentíssimos senhores que têm o monopólio da abstracta voz do todo estadual. E ei-los disfarçados de gente sensata, ei-los fingindo que não são partidocratas, ei-los, os "entertainers", apresentando com voz grave as venerandas palavras da verdade, da pátria em perigo, do paga mais.

Que mande quem pague e que todos paguem o que devem. Só deveria ter direito a voto quem provasse o cumprimento dos respectivos deveres de sócio-cidadão. Só através de um regresso a certa forma actualizada de democracia censitária é que se poderia levar a cabo uma efectiva regeneração da democracia. É evidente que não falo do censitário devorista, do burguês das possessões, desse primeiro predador das revoluções liberalistas. Falo em novas formas de autenticidade que nos permitissem recordar que a história da democracia é a história do imposto.



Custa ser governado por quem apenas é detentor de privilégios e de isenções e que a si mesmo se promove à categoria de corpo especial. Onde a justiça falece porque o dar a cada um o que lhe é devido deixa de ser medido pelo critério do mérito e começa a ser abusivamente marcado pelo preconceito e pela cunha de casta.

Quase todos começamos a dizer que ministro não é sinónimo de serena razão de pátria. Dizer ministro começa a ser aceitar a degradação do partidocrata, do tipo que não inspira sentimento de verdade, de imparcialidade, de probidade. Porque muito ministro usa os meios de todos para uso privativo do próprio ou dos respectivos compadres e comadres. Porque ministro é para alguns aquele que prefere beneficiar o amigalhaço, o camarada, o primo, a tia, a sobrinha.



Quando a república deixa de ser uma efectiva coisa pública e o dito homem de Estado perde o norte do bem comum estilhaça-se o prestígio que, normalmente, atribuíamos aos primeiros dos servidores públicos. E há supremos servidores da comunidade que deixam de ser exemplos de boa conduta pessoal, social e política e passam a avícolas exemplares do anedotário que qualquer adolescente aponta como caricatura. E se tudo isto entrar em espiral, será bem melhor que, mui democraticamente, lancetemos os tumores, sob pena de a degradação nos apodrecer integralmente.

E, pior do que isso, quando o cidadão comum, perante a descrença generalizada, começa a resignar-se com o, do mal, o menos, quase atingimos o nível daquele ambiente sul-americano passado, quando certos políticos usaram como "slogan" o "roubo, mas faço".