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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.12.04

Soares, o "bonus pater familias" da democracia vigente




Escrevi em 1989:


Eu que não sou socialista nem nunca fui comunista, quero agradecer, a esse ex-comunista e teimoso socialista, aquela suprema lição de tolerância que nos tem transmitido. Parafraseando Popper, podemos também dizer que aquilo que deve orgulhar o Portugal deste soarismo não é a unicidade de ideias, mas a sua multiplicidade, o facto de podermos acreditar em muitas e diversas coisas, em muitas coisas verdadeiras e em muitas coisas falsas, em coisas boas e em coisas más. Em podermos comemorar o avô Salazar, pedir o regresso do primo Otelo ou saudar os cravos de Abril, esquecendo ou acentuando os "terrorismos" de cada um deles.

Apenas tenho pena que alguns tios mais novos da nossa democracia pareçam misturar o discurso do avô com o do pai e não tenham tempo para, em silêncio e solidão, relerem os clássicos antifundamentalistas desta tolerância ocidental. Talvez , então, percebessem que ter a maioria não é ter a verdade, que há diferenças entre a razão da força e a força da razão, que o coração tem razões que a razão desconhece e que todo o maioritarismo tende para o concentracionarismo, caso não reconheça, como diz Popper, que o problema fundamental da teoria do Estado é o problema da moderação do poder político. . . através de instituições pelas quais o poder é distribuído e controlado porque toda a política consiste na escolha do mal menor. A política não tem que ser a continuação da guerra civil por outros meios.

Este nosso Portugal, de uma democracia que queremos pós-salazarista e pós-abrilista, só será efectivamente democrático se existir uma efectiva democracia de cidadãos e uma radicada institucionalização do poder. Ora, apesar dos louváveis esforços desses actuais reconstrutores do Estado Jurídico, que são os nossos revisores constituintes, não há dúvida que continuamos dependentes de pessoas e, consequentemente, susceptíveis de tombar nesse vazio de poder chamado complexo de orfandade.

Mário Soares é, de facto, aquilo que parece: o "bonus pater familias" da democracia vigente. Parabéns!