a Sobre o tempo que passa: <span style="font-family:georgia;color:red;">Palavras para quê?.. É um artista português</span>

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.1.05

Palavras para quê?.. É um artista português



A convite da Eduarda Maio, participei, ontem, 5 de Janeiro, no forum da "Antena 1" que tinha, como objecto de discussão, o delírio na política, relatando-se, de forma pormenorizada, a anedótica questão Pôncio Monteiro. Fiz uma intervenção visando passar uma simples mensagem: os políticos que nos dominam apenas pretendem conquistar o poder, mas esquecem-se que o verdadeiro poder tem que assentar na autoridade. Eles são meros actores que não conseguem ser autores, meras criaturas que não são criadores, onde passam a guionistas os donos dos bastidores. E, como actores que são, pretendem reduzir-nos à unidimensionalidade de auditores de uma cidadania passiva, sujeita ao rolo compressor do respectivo delirium tremens. O episódio Pôncio revela, contudo, pormenores típicos de uma récita de amadores em qualquer festa de bairro suburbano e, com todo o respeito pelos gloriosos actores de comédia, a coisa já atinge os píncaros de uma tragicomédia bufa que copia mal as boas cenas da nossa antiga revista à portuguesa.


A verdadeira conquista do poder implica que se conquiste a palavra, que se use a persuasão, em vez da força, para levar o outro a obedecer pelo consentimento. Quando a palavra perde o sentido e o político tende a deixar de ter autenticidade, o dito assume-se como alguém que está por cima, falando para baixo, a partir do pretenso lugar em que se acumula o poder, a fim de gerar uma corrente ascendente de influência. Assim se compreende que os recém-chegados à plataforma directiva de qualquer instituição tratem de legitimar-se invocando os antecessores e até os próprios fundadores da coisa, como acontece com a instrumentalização que os líderes do PSD fazem com a fotografia de Sá Carneiro e os do CDS com a de Adelino Amaro da Costa, dado que os do PS têm o fundador vivo e, ainda por cima, como um activo ausente-presente.


Imagem colhida em Abre Surdo

Pior do que isso: quando os políticos não conseguem convencer o auditor pela palavra e pela invocação do fundador, logo passam à fase dois do convencimento, pelo recurso aos ideologismos ou pelo manuseamento propagandístico. Aqui, a nossa direita em desespero costuma usar aquilo que se qualificava como o "anticomunismo primário", o exacto inverso do "antidireitismo" da própria esquerda sem argumentos. E, como dizia Brito Camacho, para argumento fraco, voz forte, que argumento forte pode apenas ciciar-se...

De qualquer maneira, a conquista do consentimento pela palavra implica a necessária fidelidade ao sentido grego da política, onde a palavra "razão" (logos) é o mesmo do que "discurso", porque o animal racional é o animal que discursa e o homem é único animal que fala e que, por isso mesmo, deve ter respeito pela palavra dada e cumprir o sentido do discurso,



Ora, todos sabemos que neste tempo de teledemocracia, de videopoder e de mediocracia, se continua a ser verdade que, em política o que parece é, e que só existe politicamente aquilo que se comunica, há que atender à circunstância de não se poder comunicar aquilo que não existe e de poderem cometer o erro de fazerem propaganda de uma marca, ou de uma forma, que não corresponde ao conteúdo, com os riscos de rejeitar-se o propagandeado por falta de autenticidade.

Não há dúvida que os grandes líderes políticos têm que ser bons actores. Assim o foi Ronald Reagan no auge da revolução conservadora, onde nunca houve falta de autenticidade. Assim o continua a ser João Paulo II, notável actor que também é um dos mais extraordinários autores do século XX. Assim o fez Mário Soares quando recebeu uma bofetada na Marinha Grande. Assim o tentou Marcelo Rebelo de Sousa, quando pretendeu derrotar Sampaio através de um banho nas águas frias de Tejo quase morto. Assim o praticou Cavaco Silva quando se encenou como o homem de Boliqueime, num guião da autoria de Luiza Manuel de Vilhena.



Por issso repeti o que já antes tinha blogado quando, parafraseando Betariz Costa, disse das saudades pelo tempo em que os Santanas eram Vascos. Porque estes políticos que nos amarfanham parecem estar a cumprir a profecia de Belmiro de Azevedo quando, referindo-se aos primeiros dias de Pedro como primeiro, o qualificou como o entertainer de um interregno. Porque Pedro e Paulo, filhos da geração Zip Zip e talvez órfãos dos grandes comunicadores, como era Carlos Cruz, são bem desnivelados face aos modelos do Secretariado da Propaganda Nacional de Oliveira Salazar, porque este sempre foi buscar, para dirigir o paradigmático organismo, um sujeito com a dimensão cultural de um António Ferro, enquanto os cartazes eram desenhados por Almada Negreiros, os filmes por António Lopes Ribeiro e as encenações de rua por Leitão de Barros.

Mas cuidado com certas traduções em calão de Jacques Séguélla, desses publicitários em saldo que por aqui passam num intervalo de uma qualquer campanha eleitoral africana ou sul-americana. Já passámos do mero marketing político para a "manegement's perception", à Karl Rove. Já não chega o "big brother" momentâneo ou o interclassismo da "quinta das celebridades" e talvez seja perigoso fazer uma adaptação livre dos "donos da bola" para "donos do poder". Quando os Santanas eram Vascos, havia o "pátio das contigas" e a "aldeia da roupa branca", fitas que talvez fossem esteticamente superiores, pela eficácia de um condicionamento soft.

O que se passa é um pouco mais semelhante ao propagandismo marcelista, com a Agência Latina de Fernando Tavares Rodrigues a vender a política de imagem das "conversas em famílias" e com o ritmo da direcção de Ramiro Valadão na RTP, esquecendo-se muita gente que o pretenso Ferro do crepúsculo do "ancien régime" até era conhecido pelo Ramiro Va..., porque quando ele fazia as suas crónicas radiofónicas na Emissora Nacional, os ouvintes desligavam logo e do Valadão, ficavam-se pelo Va... Também agora corremos o risco que o povo desligue os aparelhos e passe para aquela abstenção que costuma anteceder as quedas dos Marcellos Caetanos.



Hoje, os políticos que nos lideram, esses feitores dos efectivos donos do poder, que se escondem nos bastidores, vivendo a vertigem das alturas ministeriais, não passam daqueles fidalgotes que trataram de assassinar os progenitores, mas procurando cumprir a lição que eles lhes deram. E não é por acaso que Pedro e Paulo são, neste sentido, os discípulos ingratos de Cavaco Silva e de Marcelo Rebelo de Sousa, copiando-lhes anedoticamente os cartazes, os "slogans" e os métodos, onde a "criação de factos políticos" passou a chamar-se "agenda setting" e os banhos no Tejo poluído se volveram em cruzadas contra o "Prestige", com a ajuda da Senhora de Fátima, ou a co-incineração, com a ajuda de Sócrates. Apenas nos falta o novo romance de cordel do homem de Boliqueime, ao ritmo de Alexandre Frota e José Castelo Branco, e a que poderemos dar o épico título de As Ideias Políticas de Paulo ... ou de Pedro. O guionista até pode ser um desses writers que vai emitir as inevitáveis autobiografias dos celebridades com quem eles rivalizam em tiragens pimba, ao estilo de Na Cama com o PS.