Amanhã, a manhã ainda não será manhã
Acordei de manhã em dia de voto, com a angústia de temer a escolha que vai fazer o meu vizinho, depois de quase um triénio de governo de queques, educados pelos viscondes da SIC e da TVI, entre o Zé Castelo Branco e a Cinha Jardim. Acordei farto desta rede feudal de cunhas e favoritismos que nos transformou num país ocupado pelos influentes. Acordei farto desta gente, com muitos títulos no cartão de visitas, conseguidos pela safadeza e pela vaidade mediática que expulsaram as boas moedas do mérito e do princípio da igualdade de oportunidades. Acordei farto destes restos das cortes salazarentas, retocados pela diplomacia do croquete, pelas jantaradas dos salamaleques, e pelo uso e abuso da besuntada adjectivação da treta.
Sei que há nove milhões de eleitores que vão ter a ilusão de decidir, depois do carnaval de uma campanha, onde o forte continuou a oprimir o fraco, usando o nome do povo em vão. Onde poderes ocultos financiaram, pressionaram e perseguiram, actuando impunes, a nível da face invisível do poder.
Todos sabem quanto vai custar o favor concedido pelo dono do "stand", ao emprestar o carro de som ou as chaves do Mercedes para o líder. Todos conhecem a contrapartida que vai ter de se pagar ao empresário Manel, que emprestou a tropa dos empregados para se colarem os cartazes. Todos conhecem do que vai ter que ser pago ao Xico da petrolífera, porque cedeu algumas coroas para o transporte dos militantes para o comício. Todos conhecem quantas comutações há que fazer à cantora pimba que gastou a garganta no comício, ao escritor premiado que foi ao jantar de apoio, à artista de cinema que deixou ser fotografada com o candidato. Ou ao pato bravo que cedeu a loja para servir de sede de campanha.
É em tempos de campanha que os poderes fácticos mostram a verdadeira face da influência, raspando o verniz do pudor. Quando o banqueiro em apuros recebe o telefonema do ministro que lhe vai despachar a encrenca. Quando o empreiteiro recebe a visita do vereador e faz a troca necessária para a superação deste ou daquele entrave burocrático. E não há politólogo mediático que saiba ir além das sondagens e do inventário da classe política, enumerando, em adequado trabalho de campo, os inúmeros meandros da pressão, em português praticada.
Às vezes, apetecia fechar este meu blogue. Não mais dizer política. Não mais dizer esquerda, direita ou centro. Ceder à pressão deste doce pensamento único que nos pretende normalizar e reconhecer que ainda vivo na idade das trevas, só porque não sigo os ditames dos receberam as lições da modernização teológica, vindas desses representates da falsa burguesia fina e bem-educada pelos colégios congreganistas e pelas universidades concordatárias ou protocolarizadas, desses que transformaram a luta política e o combate de ideias em formas de sublimação dos problemas sexuais não resolvidos.
Dos que elevaram à categoria de políticos dominantes esses subprodutos do reservatório dos frustrados, entre os que temem o prazer de viver, segundo o dever da procura da felicidade, aos que afogam as angústias com teúdas e manteúdas. Dos que continuam à espera da chegada de uma procissão onde a hipocrisia precede a Inquisição e onde é inevitável que desponte a era da intolerância e, com ela, os processos salazarentos de defesa dos bons costumes, com cabos de mar a medirem o tamanho dos biquinis e polícias de segurança pública a interpelarem os parzinhos que nos bancos de jardim exibissem o despudor de um beijo.
Porque é este ambiente dos diáconos remédios que consideram a masturbação um pecado que levará ao poder a libertinagem, onde os extremos se atraem e fecudam, expulsando o sereno prazer democrático do diálogo com o adversário.
Aqui, vou recolhendo mais alguns sinais de intolerância que nestes dias caíram sobre os homens livres. Desses pequenos passos de uma persiganga, às vezes benzida pelas pias da corrupção santificada, onde o torquemada de alcatifa pensa que não entrará no inferno, só porque os fins da canonizada instituição de que é agente continuam a justificar os meios e instrumentos da fina tortura. E os ditos cujos, ao gerarem irmãos-inimigos de idêntica intolerância, quantos mais votos têm, mais verdadeiros se vão mostrando, perdendo o disfarce dos trejeitos camaleónicos com que cantarolavam a lenga-lenga do juridicismo.
Aquilo que devia ser a nossa principal aposta, a educação para a cidadania, transformou-se numa espécie de grande lixeira, para onde vamos lançando fundos públicos reciclados pela burocracia e pelo carreirismo. Nesses meandros onde dominanm os caprichos dos poderosos e dos tecnocratas, aquilo que devia ser missão transformou-se em subproduto dispensável e quase acessório, dado que não é possível, com esta grelha mental, avaliar o mérito. A corrida à papelada e o carimbo de conformidade com a cobardia sistémica geraram este ambiente onde todos correm à procura de um lugar qualquer, desde que esteja à sombra de estável posto de vencimento ou de uma pensão dourada. Quem fingiu cumprir o horário e assinar o livro de ponto do relatório ilegível, sempre pode alcançar aquele nível de poder que lhe permita isentar-se da lei que ele próprio continua a emitir para os que lhe estão por baixo.
Amanhã, a manhã virá de onde o sol nos vem chegando. Amanhã, a manhã será um novo tempo. Mas não será no dia 21 de Fevereiro de 2005. Demorará mais tempo. Que amanhã, a contabilidade dos analistas de cenários vai concluir que o poder sufragado terá de continuar a governar a retalho, recauchutando a lenga lenga do politiquês do bloco central, sem que consiga a necessária mobilização nacional para o bem comum. Amanhã, alguém vestirá os panos da impunidade do poder e entrará naquele breve e ledo estado de graça que lhe permita reacender o modelo do passa-culpas, relativamente aos anteriores ocupantes dos cadeirões do poder. Amanhã, alguns dos figurões não se envergonharão nem pedirão a respectiva demissão, porque, sendo políticos profissionais, não querem ir para um desemprego não subsidiado. Amanhã, a manhã ainda não será manhã.
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