Sugestões para a reconstrução da direita. Democratas-cristãos, laicizai-vos!
Desde que existem partidos em Portugal, a atracção por um movimento político de marca católica produziu entidades como o Partido Nacionalista, nos finais da monarquia, o Centro Católico Português, a meio da I República, e o CDS, nos alvores do 25 de Abril. O primeiro, de inspiração jesuítica, morreu com a monarquia, sem ser monárquico e até com certo adesivismo; o segundo foi criado pela própria conferência dos bispos e autorizado pelo Papa, inspirando a posterior criação da União Nacional, esta por deliberação do conselho de ministros; o terceiro nunca foi assumido pela Igreja oficial, dado que a mesma preferiu também difundir-se por secções do PPD e do PS e até recebeu alguma oposição quando Lucas Pires proclamou certo liberalismo. Aliás, a marca democrata-cristã nunca conseguiu, a nível da opinião pública, o carácter laicista do Partido Popular de Luigi Sturzo e nem sequer seguiu o conselho de Jacques Maritain sobre a necessidade de movimentos laicos inspirados pelo cristianismo.
Esta relação traumática entre a hierarquia eclesiástica e os partidos que invocam o humanismo cristão tem muito a ver com a memória de colaboracionismo da Igreja Católica com o salazarismo, apesar de sempre ter existido uma oposição católica, principalmente a partir de 1945, apesar de haver D. António Ferreira Gomes, cristãos progressistas, cristãos pelo socialismo, cristãos marxistas, Capela do Rato, etc. Contudo, mesmo a grande aliança anticomunista que se estendeu dos bispos-condestáveis a Mário Soares, das manifestações de Braga, com o cónego Melo, ao comício da Fonte Luminosa, com Edmundo Pedro, e a consequente pacificação das relações entre a Igreja e o Estado, quando a democracia pós-revolucionária entrou na rotina da estabilidade, surgiram os inevitáveis conflitos a propósito da punição penal da interrupção voluntária da gravidez, que bem poderia ter a boa solução da revisão da Concordata, a propósito do divórcio.
Quando a Igreja diz que cabe aos polícias, aos juízes e às cadeias do Estado proteger o respectivo conceito de direito à vida, não confiando na autonomia das pessoas para a defesa desses valores, e quando parece dizer que só os bons católicos é que podem obter o certificado de luta contra o aborto, considerando que só pela heteronomia estadual é que se pode defender esse valor absoluto, gera-se uma ruptura social complexa. Da mesma forma, quando a mesma Igreja assume uma leitura filosófica hierarquizada para condenar abstracções como o gnosticismo, o racionalismo ou outras perspectivas do mesmo género, a pretexto do afastamento de maçons da vida religiosa católica, mesmo que, depois não tenha poderes de peritagem oficial, visando uma eventual remessa do mau pensamento para o poder secular, corre o risco de adoptar um modelo de intervencionismo mental que pode entrar em choque com quem assume posturas liberais de matriz kantiana, ou reconhece que alguns dos principais conceitos políticos não passam de conceitos teológicos secularizados.
Com efeito, a eterna comunicação entre o pensamento, a política e a religião tanto levou a que o cristianismo entrasse em sincretismo com o estoicismo e outros movimentos greco-romanos pré-cristãos, como levou a que os princípios cristãos fecundassem todo o pensamento pós-cristão, num movimento perpétuo do pensamento livre que, nem por isso, se identifica com o livre pensamento. Daí as contradições dos irmãos-inimigos, onde muito ateu anti-cristão é, algumas vezes, bem semelhante ao beato, ou fundamentalista, bem cristão. E onde até o congreganismo se fez à imagem e contra-semelhança do anti-congreganismo, com os consequentes sucedâneos dos colectivismos morais, em que até os partidos comunistas se assemelham às ordens religioso-militares.
Este confusionismo, pouco liberal, que, infelizmente ainda agita subliminarmente a política à portuguesa, exige, aos que se dizem democratas-cristãos, que cumpram os ensinamentos de Luigi Sturzo e de Jacques Maritain, para que não se perca a riqueza do diálogo entre o humanismo cristão e o humanismo laico. Jacobinismo e anticlericalismo, nunca mais! E invocar o nome democrata-cristão para justificar a cedência ao capitalismo de Estado, ainda é pior do que cantar a caridadezinha...
PS: Para os devidos efeitos, comunico aos meus perseguidores oriundos de certas obras da sacristia que não sou maçon e que continuarei a citar Kant, principalmente como fiel da democracia e do Estado de Direito, tópicos que talvez constituam uma espécie de religião secular e de teologia civil. Sem paideia não há polis. Por isso, até era capaz de comungar numa fraternidade que fosse inspirada pela mestria de Agostinho da Silva, mesmo correndo o risco de heresia...
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