Nove anos de presidente, Sampaio serviu...
Hoje, 9 de Março, graças à gentileza de Manuel Acácio, fui mais uma vez convidado para participar no "Forum da TSF", visando comentar o nono ano da presidência de Jorge Sampaio. Sem fazer elogios em quem não votei e de quem tenho sido bastante crítico, notei alguns pomenores na instituição.
Este é o sétimo presidente eleito por sufrágio universal e directo, depois de Sidónio Pais, Óscar Carmona, Craveiro Lopes, Américo Tomás, Ramalho Eanes e Mário Soares. O terceiro presidente eleito no presente regime democrático. O segundo civil a atingir tal dimensão.
Refira-se que uma presidência da república deste género não faz parte da média geral das democracias pluralistas ocidentais, até porque nada tem a ver com o modelo norte-americano nem com o francês. Este estilo de presidência da república é uma criação muito portuguesa, nascida da nossa experiência e cumulativamente estabelecida, onde a personalização democrática do poder se transformou numa necessidade a que o povo tem dado confiança, sendo a instituição portuguesa mais prestigiada.
O nosso presidente não é a rainha de Inglaterra ou a veneranda figura do corta-fitas; também não é o presidente prisioneiro de uma maioria parlamentar, como o poderia ser, se levássemos ao máximo a ideia de "uma maioria, um governo, um presidente"; é também muito mais do que a veneranda figura de um chefe de Estado, dependente de um "princeps" ou de um "cânsul", com quem fingiria em coabitar em regime de presidencialismo bicéfalo, conforme foi teorizado pela Constituição de 1933; está também distante do chamado presidente plebiscitário, nascido do sufrágio universal. O nosso presidente conforma uma instituição que tem sido objecto de sucessivas modelações criativas, constituindo o organismo mais estável do regime.
No princípio foi Ramalho Eanes, em nome da legitimidade político-militar dos vencedores do 25 de Novembro de 1975, visando o cumprimento do programa pós-revolucionário de instauração da democracia pluralista e da sociedade aberta, com o regresso dos militares aos quartéis e a devolução ao povo da plenitude da soberania, sem as tutelas dos revolucionários. E Eanes cumpriu o prometido, em plena rivalidade com dois políticos que ocupavam o mesmo espaço de moderação, como o eram Francisco Sá Carneiro e Mário Soares.
Se, na primeira eleição, venceu Otelo e a esquerda revolucionária, já na segunda se assumiu mais como civil do que como militar, em disputa com o candidato de Sá Carneiro e Freitas do Amaral e com o não apoio de Mário Soares e acabou a sua função de forma intervencuionista, favorecendo a criação de mais um partido político e entrando no jogo eleitoral, onde acabou por ser derrotado. Isto é, entre o bonapartismo e o gaullismo, quando Soares ainda tinha um sonho mexicano de um partido revolucionário institucional, a ele devemos a paz sem vindictas e a própria possibilidade de termos a alternância no poder, quando a direita venceu as eleições em 1979. Como ele disse de si mesmo, foi "o presidente de todos os portugueses".
Em segundo lugar, tivemos Mário Soares, o primeiro presidente totalmente civil das democracias portuguesas que foi eleito por sufrágio directo e universal. Eleito pelo "povo de esquerda" contra a candidatura cavaquista de Diogo Freitas do Amaral, teve que viver em coabitação com um governo de direita que chegou à maioria absoluta e teve tentações de um presidencialismo de primeiro-ministro, com este a considerá-lo até como uma das forças de bloqueio. Acabou por assumir-se como a voz tribunícia dos portugueses que chegou a invocar o direito à indignação contra o governo e a denunciar a hipótese de uma ditadura da maioria, apesar de Cavaco Silva o ter que apoiar na segunda eleição.
Tanto foi um integrador de memórias como se assumiu como o pai-fundador da democracia, dado que assistiu à chegada da geração pós-revolucionária, principalmente depois da morte de Sá Carneiro e da retirada de Ramalho Eanes. Sabiamente, percebeu que a democracia não podia cair no erro da Primeira República e tanto refinou o sidonismo presidencial, como evitou os conflitos entre a política e a religião, ao mesmo tempo que potenciou o esforço de integração europeia, assumindo-se como o grande caixeiro viajante da nossa democracia, prestigiando Portugal e prestigiando-se a si mesmo. Até fez as pazes com os monárquicos, nomeando, muito simbolicamente, Carlos Azeredo como chefe da casa militar.
Repetiu assim um gesto de Salazar quando, na primeira grande decisão que tomou em 1932, promoveu funerais de Estado ao jovem rei D. Manuel II, assim enterrando a monarquia, dado que o último rei da quarta dinastia, se ainda estivesse vivo em 1945, poderia ser a forma discreta de restauração da democracia, com o apoio dos aliados e dos democratas portugueses, a fim de enviarem Salazar para Santa Comba Dão.
Soares também percebeu que a presidência da república, em 1958, com a candidatura de Delgado, passou a ser uma instituição de esperança democrática, quando o Estado Novo, temendo o tal golpe de Estado constitucional, voltou ao modelo de eleição do presidente num colégio eleitoral. Isto é, a oposição democrática assistiu, com alívio, à burrice salazarenta, quando este abandonou a ideia plebiscitária de Sidónio e Carmona, em 1918 e 1928, homens que, mesmo sem concorrentes, obtiveram mais votos do que todos os anteriores partidos republicanos em eleições parlamentares.
Finalmente, Jorge Sampaio. Em quem nunca votei. Aliás, em matéria presidencial, apenas dei o meu voto em Ramalho Eanes, sempre, e em Mário Soares, na primeira eleição. Em Sampaio, tanto não votei como sempre critiquei, porque temi que ele se transformasse em rainha de Inglaterra e porque senti que ele, a certa altura, teve medo de ser intervencionista, apostando num governo de iniciativa presidencial. Julgo que não tive razão e reconheço agora que ele apostou num modelo bem mais sábio, porque estava, com certeza, melhor informado e tinha uma perspectiva mais ampla das nossas dinâmicas.
Foi-lhe difícil ser criativo depois de Soares, fugindo ao universo dos complexos e das lealdades de esquerda, mas conseguiu cumprir "ad absurdum" a religião secular do Estado de Direito e a ideia pedagógica de presidência, fintando os desafios da guerra do Iraque, da questão da Casa Pia, da partidarização das forças armadas e até da ida de Barroso para Bruxelas, onde sacrificou as crenças individuais àquilo que consideraou o interesse nacional. E ganhou a aposta no "timing" da dissolução do governo Santana/ Portas, mesmo com o sacrifício de Ferro Rodrigues. O menos intervencionistas e mais anti-populista dos três últimos presidentes resistiu à tentação da conspiração presidencial e, esticando a corda, acabou por cumprir o essencial do respectivo programa, contribuindo para o prestígio da instituição. No fundo, cumpriu a respectiva missão e foi homem de palavra relativamente ao programa pelo qual foi eleito.
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