a Sobre o tempo que passa: Capitão Salgueiro Maia

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.4.05

Capitão Salgueiro Maia



Só hoje li a entrevista que a filha de Salgueiro Maia concedeu ao "Correio da Manhã". E sinto o dever de homenagear um homem livre que me deu esperança. Ele foi o meu 25 de Abril e o meu 25 de Novembro. Apenas transcrevo partes da mesma. Tal filha, tal pai:

Catarina caminha apressadamente, sem nunca perder a postura, deixando para trás as sombras das nuvens a atropelarem-se. Dirige-se para a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, onde em frente a uma imponente portada homens devidamente fardados a aguardam curiosos. Num só movimento, brusco, a jovem retira os óculos de sol do rosto. Os olhos despidos denunciam a sua identidade. Não há alma viva que não tenha presente na memória aquele olhar penetrante, verde reluzente. “Você é que é a filha do capitão”, diz prontamente um dos militares, estendendo-lhe a mão. A jovem retribui o gesto. “Sim, sou eu.” E apresenta-se: “Catarina Salgueiro Maia.”

Catarina, 19 anos, é nada mais nada menos do que filha de Fernando José Salgueiro Maia, oficial do Movimento das Forças Armadas, que a 25 de Abril de 1974 conseguiu derrubar o regime ditatorial, conquistando assim a tão desejada liberdade para o País e um lugar na história de Portugal, com apenas 29 anos. Morreu a 3 de Abril de 1992, 18 anos depois. Catarina tinha seis anos. São, por isso, muito vagas as recordações que guarda do pai. “São meia dúzia, mas são fortes”, realça. “Ele era uma pessoa muito animada, sempre foi muito dado a festas com os amigos e a cantorias. Gostava de estar rodeado de muitas pessoas. Mesmo doente, transmitia uma alegria muito grande. Nunca acabou com as festas lá em casa”, recorda com palavras embebidas de vaidade.



“Tenho muitas saudades, mas ele está sempre presente.” Para preencher o vazio da precoce ausência paterna, a jovem transporta sempre consigo duas fotografias do pai, que guarda religiosamente na carteira cor-de-rosa. Outra das formas que encontrou para o homenagear foi incluir no primeiro disco da Aromas ‘Grândola, Vila Morena’, música de Zeca Afonso, que deu o mote à Revolução dos Cravos. “Lembro-me de ele andar sempre a cantarolá-la, de tambor na mão, pela casa. Arrepio-me sempre que a oiço, mais ainda quando a canto.”

A filha do capitão Salgueiro Maia é pouco dada a questões políticas. “Nunca me interessou, não percebo nada de política”, assume. Apesar disso, tem uma opinião formada sobre a forma como o seu pai assistiria ao Portugal actual. “Se ele voltasse ao mundo ficaria chocado com o estado do País. Ele lutou por uma coisa que, com o tempo, acabámos por distorcer: a questão da liberdade levada demasiado a fundo, sem limites.”