a Sobre o tempo que passa: Declaração de dívida intelectual

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

19.4.05

Declaração de dívida intelectual




Agradeço aos estimados analistas ortodoxos da minha heterodoxia o convite que me fizeram para não ser. E que os deve ter enchido de gáudio, porque sempre avisaram quem de direito sobre o perigo desta espécie de bestas do apocalipse de que faço parte.

Queria apenas dizer que o copo transbordou depois daquele pinguinho de água em que se traduziu a primeira provocação recebida sobre a matéria e que transcrevia uns "slogans" identitários que marcam este blogue desde a respectiva renascença. Imediatamente comuniquei a quem de direito que deixei de ser, para poder ser.

Quem silencia ("tacet"), não consente ("nihil dicit"). Apenas nada diz, para poder voltar a dizer o que sempre disse, mesmo quando se treslia o que se lia. Os únicos realistas em Portugal são os adeptos do trancendentalismo da matéria, aqueles ideais-realistas que seguem a natureza das coisas.



Porque o natural sempre foi o mesmo do que o dever-ser, onde, segundo o conceito grego e jusracionalista, natureza é o mesmo do que razão, do que procura da perfeição e do melhor regime. Aliás, é por dentro das coisas que as coisas realmente são.

Ora, como o odiado teórico apenas é, segundo os tais gregos, que, afinal, somos nós todos, o homem maduro, isto é, o que repensa pela própria cabeça o pensamento dos outros, o que compreende, o que prende uma coisa com outra, folha com folha, árvore com árvore, para poder ter a intuição da essência daquilo que é todo, mesmo que seja a alma da floresta, não serei eu que passarei além da minha chinela, dado que apenas reclamo o tal conhecimento modesto sobre as coisas supremas.

Há muitos e melhores aparelhísticos da "intelligentzia" que podem ser mobilizados para posteriores "nomenclaturas", e não será de mim que virá a ambição de ser deputado, ministerial ou director-geral. Continuo a preferir estar de acordo comigo mesmo, ainda que possa vir a estar em desacordo com todos os outros que se pensam os representantes dos outros.



Já li cuidadosamente o que está extremamente bem feito e obedece aos rigores de certos subsolos filosóficos que eu bem conheço. Tudo tem imensa qualidade, mas situa-se claramente longe da matriz do que se inscreve nos princípios do que hoje, em termos comparatistas, é o mínimo denominador comum da doutrina que perfilho. A coisa é de tal maneira clarificadora que me liberta de qualquer espécie de comunhão axiológica com os novos rumos da viagem. E até pode constituir um interessante desafio concorrencial para os novos teóricos do ecletismo.

Tenho diversos fundamentos e julgo ter escrito algumas coisitas sobre a matéria em vários outros sítios, procurando cumprir o racional e afectivo contrato de comunhão que me liga à pátria. E não o expresso apenas sentimentalmente, dizendo que sou mais isto ou mais aquilo, coisa que na verdade me sinto, porque bem longe das neo-teorices aí constantes. É uma questão de honra e de inteligência que me levam à rejeição funda.

Do que tenho vindo a leccionar em teoria do Estado, teoria política, filosofia do direito ou teoria das relações internacionais, pode extrair-se um certo posicionamento de subsolo filosófico, não só distante, como também adverso de outros posicionamentos. Não se trata da esquisitice de um "narciso", da revolta de uma "prima dona", mas de uma coisa bem mais simples. Todos os meus mestres, como Rousseau, Kant, Jacques Maritain, Teilhard de Chardin, Emmanuel Mounier, Hannah Arendt, Leo Strauss, Eric Voegelin ou Raymond Aron, empreenderam um combate cultural que rejeita certas matrizes. E tenho que ser leal. Isto é, azul e branco, como sempre.