a Sobre o tempo que passa: O governo em graça e a oposição em des-graça

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.4.05

O governo em graça e a oposição em des-graça




Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!

Hoje, ao contrário do que é habitual, passo os olhos pelas novas da jornalada ao fim do dia e reparo que, segundo Luís Amado, não existe qualquer acordo para a construção de carros de combate nas instalações da Bombardier da Amadora, enquanto o porta-voz do portismo, Pires de Lima, considera que o PS está a agir "com muita pressa" e, em termos legislativos, pretende a liberalização do aborto. Já outro companheiro deste grupo, Nuno Melo, revela que já existe um "candidato desejável", não sabemos se o desejado. Entretanto, Assembleia da República prepara-se para discutir e aprovar quinta-feira a abertura da sétima revisão da Constituição, que deverá centrar-se em alterações relativas a referendos. Aliás, a falta de novas em que se enreda este "vira o disco e toca o mesmo", ainda será mais evidente quando passar o furor dos congressos da "afundação" da direita a que chegámos.


Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucharistia Nova.

Com efeito, quando chegarem as autárquicas será o "rapa, tira, deixa, põe" do cacique silva pelo cacique costa e, no tocante aos referendos, já está tudo dito, benzido e abençoado, salvo se vier um "não" de referendos estrangeiros, os únicos que nos poderão causar alguma palpitação equivalente à invasão chinesa dos têxteis, no dia em que Bruxelas não esteve para accionar qualquer cláusula de salvaguarda. Resta-nos o senhor mendes que se prepara para assumir a gloriosa missão de supremo líder da nossa querida oposição, esse insigne representante do que mais mediocrático tem a nossa classe política. Que todo ele é palavreado sem conteúdo de pensamento, tacticismo politicamente correcto de quem tem a notável coragem de recentrar o partido social-democrata na social-democracia. Até se opõe ao estatismo dos socialistas porque, sendo "liberalizador" sem ser liberal, defende a "concorrência" e o "menos Estado".

Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,
Excalibur do Fim, em geito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!

Confesso que fiquei literalmente siderado com o debate de ontem, entre o tal mendes e o tal menezes, essa luminosa lição de repensamento político lusitano, bem marcada pela banalidade de um confronto que nem sequer teve excitação retórica. Assim se pode concluir que, com o acréscimo do "desejável", essa espécie de cardeal "in pectore" do Largo do Caldas, o engenheiro sócrates vai continuar em estado de graça com a oposição em des-graça. A única solução está em cavaco fazer uma viagem solitária até Belém, com falta de comparência do candidato do povo de esquerda, tal como os socialistas venceram a direita a que chegámos, por falta de comparência desta. Por causa desta politiqueirice cada vez mais insípida, é que algumas vozes começam a dizer que certas famílias andam para aí a falar numa hipótese de candidatura de soares, em nome da classe daqueles ausentes-presentes que atingiram a categoria da impunidade, que é um estado bem próximo do matefísico e deste utópico gerontocrático que nos vai enredando.

Por outras palavras, a longa, ou curta, vida da aventura socrática parece não depender de uma oposição que não há, à excepção das margens axiológicas agitadas pela conferência episcopal. O governo do estado de graça está apenas dependente do que é inevitável, isto é, do desencanto que a erosão do poder irá provocar, quando se enredar nas teias das frustrações que se sucederão às altas expectativas que o transformaram em super-governo. Só que essa disfunção pode durar bem mais do que o guterrismo, dado que as barrosadas, santanadas e portadas acabaram, felizmente, por não passar do momento da potência ao momento do acto, apesar do estadão com que se vestiram de pose algumas excelências ministeriais de fato às riscas. Apesar das arrogâncias jagunceiras com que se enfeitaram os seus intelectuários, gerontes, apaniguados e peões de brega.

Espero que a oposição nos acabe por excitar, para que o povão não tenha que chegar à conclusão que, com este mais do mesmo, terá que revotar no PS, se assim ficarmos condenados a ter que escolher entre o que está e o que estava, agora repintados por esta nova retórica partidocrática. Vale-nos que, na Quadratura do Círculo, José Pacheco Pereira declarou que se considera mais à esquerda do que muita gente do PS e que até não se considerava de esquerda, coisa que o Jorge Coelho não contestou, acrescentando que a estratégia de mendes é igualzinha à de sócrates.