a Sobre o tempo que passa: As maravilhas jurídicas deste milénio

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.4.05

As maravilhas jurídicas deste milénio



Alertado pela Grande Loja do Queijo Limiano, leio a entrevista do meu amigo José Miguel Júdice ao "Jornal de Negócios", esfrego três vezes os olhos, leio outra vez, medito no estado a que chegámos e releio: o Estado e as Empresas Públicas deviam ter de pelo menos consultar as três maiores sociedades em Portugal sempre que precisam de advogados (PLMJ, de que é sócio, à Vieira de Almeida & Associados e à Morais Leitão, Galvão Teles Soares da Silva & Associados). Leio e mais releio: que nenhuma das três «quer privilégios», mas sempre que o Estado ou Empresas Públicas têm de escolher advogados, «pelo menos que consultem estas três sociedades.» Volto a ler: «O estranho é se em qualquer operação do Estado não nos consultarem. Diria que se não nos escolherem, é preciso que justifiquem.» E mais ainda leio: as sociedades de advogados são Centros de Decisão Nacional. Aliás, «só neste escritório trabalham 300 pessoas, é metade da Bombardier. Fala-se em preferência nacional para todos os sectores mas não na advocacia. Porquê?».

Tentando actualizar a minha "reaccionária" formação em leis, depois de verificar como as "auditorias jurídicas" existentes nos vários ministérios foram ultrapassadas pelo recurso à consultadoria deste oligopólio, também bastante influente a nível da partidocracia e do mundo dos grandes negócios, julgo que o Estado, para salvaguardar a excelência destes centros de decisão nacional, deveria dar um passo ainda mais ousado, concessionando todos os serviços da Procuradoria-Geral da República a estas entidades, ao mesmo tempo que as principais faculdades de direito também poderiam passar para a gestão das mesmas. Desta maneira, até se poderiam resolver os problemas de desemprego que afectam os jovens licenciados em direito, porque, em vez de 300 vezes três, poderíamos multiplicar por dez as novas oportunidades de excelência. Em seguida, seria talvez possível fazer uma grande operação de concentração dos três grandes e o Senhor Feliz aliar-se-ia finalmente ao Senhor Contente. E da advocacia passaríamos ao supremo estádio da gestão de interesses e, dos grupos de interesses, passaríamos à gestão da influência e, desta, ao grupo de pressão e, da pressão, ao estoiro, onde o público deixaria de ser o todo, o bem comum, o pleno, mas a parte em lugar da vontade geral, para a gargalhada nos inundasse em tráfego de barganhas.

Confesso estar definitivamente ultrapassado pelas maravilhas jurídicas deste milénio, deseducado que fui por escolas jurídicas onde fui aluno e docente, nos já longínquos séculos das trevas, bem como pelo meu estágio de advocacia feito na antiquíssima Coimbra do meu querido e falecido patrono Manuel Fernandes de Oliveira, ainda marcado por outras deontologias. Por mim, preferia o regresso ao modelo das auditorias jurídicas e a entrega a funcionários públicos em regime de exclusividade das funções de "advogado do Estado". Pelo menos, para que a mulher de César, além de séria, parecesse séria. Mas não passo de um nostálgico de certos princípios que parecem já pertencer a outras eras, embora esteja disponível para lutar pela actual constitucionalização dos mesmos, como apreendi de meus avós, campónios e analfabetos e, durante uns anos ensinei aos meus alunos de filosofia do direito na dita Clássica, antes de eu assistir a campanhas eleitorais para órgãos académicos noutras escolas, onde uma das listas até invoca o facto de ter a liderança de um advogado avençado que consegue descontos num dos escritórios dos avençados e pode pôr, de forma mais barata, as escolas concorrentes nas teias da conflitualidade jurídica dos pareceres e das consultas, com o nome de um grande, mas subscrito por um dos dessas lojas de trezentos...

Ainda acredito que seja possível uma distinção entre o público e o privado e não advogo o "tertium genus" que, na economia, deu origem àqueles vícios das sociedades de economia mística, que são pela privatização quando a coisa está a dar lucro e pela publicização, quando o risco acaba por levar a prejuízos. Até rejeito que se mantenha o sistema de uma economia privada sem a concorrencialidade da economia de mercado. Aliás, exijo regras de concorrência que punam os abusos de posição dominante. E, muito liberalmente, considero que os princípios que defendo para economia devem estender-se aos próprios advogados, sociedades de advogados e multinacionais do direito. Nem que tenha de continuar a fazer sermão aos peixinhos da blogosfera, onde não há cartéis de advocacia, mas apenas tipos como o José Maria Martins...