a Sobre o tempo que passa: Hino à glória de ter medo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

9.7.05

Hino à glória de ter medo

Sei do abstracto bem do Estado
e do preço que não tem a vida humana;
sei máquinas automáticas que registam
todos os passos do suspeito.
Sei microfilmes, computadores,
e sofisticadas torturas que o não são.
sempre de acordo com os regulamentos
Sei das regras todas, das leis,
das circulares, das convenções.
Sei prisões, direitos e garantias
códigos penais, processuais
e as teorias todas do poder.
Sei de cor os meandros do medo,
notificações, contestações, concentrações.
Sei sobretudo prisões sem culpa formada
e legalíssimas justificações de tudo.
Sei de Abril o medo e a repressão,
sei tudo isto e não estou calado.

Sei e valia mais não saber
valia mais esquecer-me de quem sou
e, renegando os princípios
por que me querem prender
entregar-me às doces polícias do pensamento.
que sem proibir nos querem silenciar.

Valia mais censurar-me, arrepender-me
rasgar meus versos, não acreditar.
Isto é, ter o prudente medo
desse bom chefe de família
que tem de ganhar a vida.
Ter em suma a cobardia de não ser,
e parecer sempre do lado que convém.

Para quê defrontar o vento novo?
e arriscar causas perdidas
quando posso aplaudir o vencedor?
Ser definitivamente da casta dos moderados
desses que tendo dito sim ao não,
aparentando não dizer nada
podem depois muito convenientemente
demonstrar que não disseram o que calaram.
Enfim: sobreviver
deixar a política para os políticos
e a pátria para os homens de sucesso