1640, Freitas Africano ou de como uma nação que nasceu e cresceu pode morrer
Por ironia do destino, teremos dentro de dias a comemoração inconveniente dos trezentos e sessenta e cinco anos daquilo a que convencionámos chamar a restauração da independência, depois de sessenta anos de domínio dito espanhol... apesar de nunca termos formalmente a independência e de apenas termos eleito um Filipe II que reinava em Madrid, Bruxelas e muitas outras partes da actual União Europeia, como rei de Portugal.
Daí que seja particularmente simbólica a edição da obra de Freitas Africano que mais de três séculos e meio depois é tirada das brumas da memória e da proibição pombalista. Porque vale a pena recuperar um dos textos justificadores de um movimento de libertação nacional, onde a acção insurreccional de 1 de Dezembro de 1640 apenas foi execução de um pensamento.
Se, sobre a matéria, já foram escritas todas as frases necessárias e eu próprio repeti muitas dessas ideias no breve estudo introdutório ao texto, não me parece que seja útil fazer hermenêutica do que deve ser pausadamente relido e repensado.
Apenas quero recordar que talvez ainda haja uma profunda corrente daquilo que pode ser qualificado como a tradição de um pensamento político português e que não se confunde apenas com um pensamento político em Portugal. Se para tanto se reunirem três condições: que continue a haver Portugal; que haja política; e que até possa existir pensamento.
Porque, para haver Portugal, talvez seja necessário detectar seguras âncoras que mantenham o que Alexandre Herculano qualificou como a vontade de sermos independentes. Coisa que não tem que significar o mesmo do que o exercício de certo conceito de soberania do absolutismo, onde à soberania externa de Jean Bodin, acresceu o delírio centralista da soberania interna de Thomas Hobbes.
Para querermos ser independentes, importa reconhecer-nos como instituição política, isto é, como ideia de obra, gerando manifestações de comunhão entre os cidadãos e com as consequentes regras processuais, a que podemos dar o nome de direito político, adequado a esse eu colectivo a que continuo a dar o nome de nação.
Para tanto, importa reconhecer que Portugal, enquanto génio invisível da cidade (Ferrero) é algo que se pode discutir, dado que, como obra humana, nasce, cresce e morre. Porque só existe como tradição regeneradora, como permanência na renovação.
Só existe como autonomia porque se foi sucessivamente reinventando e reidentificando, em torno de um eixo vital de objectivos nacionais permanentes.
Porque a autonomia sempre foi a soma da memória com os valores, tal como a “polis” sempre se assumiu como federação de aldeias em torno de uma acrópole, de uma colina sagrada, onde tanto há o palácio da governação como o templo da nação, sufragados pela praça pública que lhes dá sustento e que eles representam, em nome da participação da cidadania.
Só existimos porque, desde sempre, nos inventámos. Emergimos como “regnum” ou “respublica” na incubadora da liberdade europeia, dos séculos XII e XII, assumindo-nos como autonomia política, enquanto concelho em ponto grande, para utilizarmos a bela metáfora do Infante D. Pedro, e fizemo-lo quase federando muitas comunas, com e sem carta.
Consolidámos o processo no cerco de Lisboa, no quadrado de Aljubarrota e no discurso dos legistas das Cortes de Coimbra de 1385, numa das primeiras revoluções pós-feudais do nosso espaço civilizacional, quando preferimos o senhorio natural ao senhorio de honra.
Universalizámo-nos na armilar manuelina semeando concelhos e misericórdias pelo mundo fora e até aguentámos os desafios centrípetos da monarquia habsburga e vaticana, apesar de termos sido contaminados pelos receios da inquisição madrilena.
E reinventámo-nos em 1640, separando-nos de forma moderna, levando à prática o mapa de Fernão Álvares Seco de 1565 que, sem ser por acaso, é a primeira representação cartográfica de um Estado. Contudo, apesar de nos conformarmos de forma resistente, não pudemos ser impulso para a revolução atlântica, que passa pelas revoluções inglesa, norte-americana e francesa, porque nos perdemos em absolutismos de facto, até atingirmos esse clímax de despotismo a que demos o nome de Pombal.
Depois nos perdemos entre terramotos políticos e viradeiras, sem forças para regressarmos ao consensualismo. Esgotámo-nos em revoluções e contra-revoluções, com nacionalismos armados em soberanismos e centralismos e reaccionarismos usurpando a tradição dos factores democráticos de Portugal (Jaime Cortesão).
Quase chegámos a regressar ao consensualismo com a regeneração de 1820, mas fomos devorados pela balança de uma Europa das potências que nos proibiu o constitucionalismo da tradição. Mas, apesar de tudo, ainda resistimos, gerindo dependências e hierarquias internacionais e até conseguimos entrar na corrida colonial, em nome da qual entrámos na Grande Guerra de 1914-1918. Contudo, esgotados, entregámo-nos, depois, ao desencanto da viradeira salazarenta e a um restauracionismo despótico e doméstico com que voltámos a proibir a política.
Reinventámo-nos mais uma vez nos anos de 1974-1975, aguentando a Guerra Fria, a descolonização e, depois, a integração europeia e aqui estamos em plena crise dos desafios da globalização, onde importa lutar pela memória e pelos valores que as modas que passam de moda querem fazer apagar.
(lançamento do livro de Freitas Africano, na Faculdade de Direito de Lisboa, em 23 de Novembro de 2005)
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