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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

23.11.05

Filosofia de gente qualquer, num simples café da manhã, em plena cidade



Às vezes, o carimbo nominativo de uma diabolização inquisitorial tenta apegar-se à carapaça de um qualquer sujeito, procurando acorrentá-lo a correntes facciosas, para que ele deixe de ser um homem livre. Nessas alturas, apetece clamar à resistência, nem que seja a de um qualquer exílio interno. E há momentos em que apenas somos simples pilares da tal ponte do tédio que nos pode levar entre dois tempos, entre um pretérito a que não apetece voltar e um futuro que desejamos. Há momentos em que apenas somos gente qualquer, simples folhas de Outono que o vento pode conduzir para o outro lado. Há momentos de um silêncio que é pequeno intervalo de solidão sem angústia.



Por isso, não vou hoje falar em presidenciais. Nos três principais cidadãos que apenas são mera consequência de uma teia sistémica que é a respectiva causa. Porque não passam de meros regressos anunciados, de simples divagações de uma literatura de justificação de vidas passadas, à procura de mais capítulos para as respectivas biografias, onde a pátria os deve servir, em vez de procurarem servir a pátria. Às vezes, os pesadelos nos acordam e volvem-se em insónias, pedindo para que os escrevamos. Essas frustrações oníricas que têm bem pouco de surrealismo ou de conto de fadas, mas muito daqueles filmes de terror infantil, tipo Feiticeira de Oz.



Hoje, não. Nem sequer posso contar de uma qualquer serena tristeza que me tenha acordado em amargura de revolta. Racionalmente, observo a habitual persiganga lusitana, especialmente aquela faceta da mesma, dominante em períodos de decadência e a que desde sempre chamaram inveja. Coisa que, na chamada motorização da história, não foi posta em devido relevo por Karl Marx, apesar de podermos confirmar que ela é bem superior à falecida luta de classes.



Há muitos que continuam a pôr-se em bicos de pé, só porque andaram, anos e anos, de pré-atrás, à espera de uma qualquer subtil oportunidade para assaltarem um lugar ao sol neste reino de sombras, com cadaveroso cheiro a putrefacção. Só a mobilização pelo sonho nos poderia levar a crescer para cima e a crescer para dentro. De outro modo, a possibilidade de uma revolta de escravos acaba por perder-se em ninharias, provocadas pela baixeza das ciumeiras, onde algumas figuras de inequívoca grandeza acabam por perder-se.

Daí que muitos não queiram sair da encruzilhada e acabem por esmorecer, quando não por desistir. Quando o processualismo hipócrita dominante nos regimes marcados pelo governo dos espertos acaba por esmagar a necessária comunhão institucional, são as próprias raízes institucionais que acabam contaminadas.




Assim vai secando a alma deste país de primas-donas que, em lugares de Estado, não sabem conter as respectivas idionsicrasias, só porque se fingem notáveis engenheiros na manipulação carreirística. Como se a pátria, que é de todos, possa estar dependente das incontinências de humor de tais sumidades.

Prefiro ouvir, de vez em quando, as simples conversas de café, de operários bem aristocratas, discutindo esta ou aquela obra difícil que executaram, como se fosse artesanato feito com amor de mãos e mente. Quantos milhões e milhões de homens não perdem suas ideias na solidão de pensamentos inconversados e não registados pela escrita? Quantas vidas não há que, contadas, nos dariam brilhantes reflexões de viagens à volta de nós mesmos?