E pátria não é apenas a ideologia que justifica ou a utopia que subverte
O meu heterónimo não blogueiro nem professoral diz-me que fui ontem ao "Prós e Contras" da RTP discutir a dita "alma da nação", que tanto pode ser a "alma nacional" da revista republicana de António José de Almeida, surgida em 1910, como as contemporâneas "alma lusitana" de Teixeira de Pascoaes, ou a pré-integralista e ultra-monárquica "alma portuguesa", nascida pouco depois no exílio belga. Não sei propriamente o que fui dizendo, mas sei aquilo que quis dizer.
Podia dizer galo de Barcelos, bacalhau, sardinha assada, esfera armilar, figo, ronaldo, fado, salazar, amália, madre-de-deus, pastorinhos de fátima, vasco da gama, camões ou henrique o navegador. Podia falar dos filmes do pátio das cantigas ou da aldeia da roupa branca, acrescentar saramago, egas moniz ou fernando pessoa, mulheres de xaile negro, bois puxando abrcos e ala-arriba, com praias douradas e mourinho, referir heróis e literatos, feitiço do império, areais de alcácer, desejado e derrotas, como a de 1578-1580, terramoto, invasões francesas, guerra civil, independência do brasil, ultimato, la lys, guerra colonial ou descolonização, inquisição, magriços, eusébio de benfica bicampeão europeu. Disse que um povo era uma comunidade de significações partilhadas, que uma pátria era uma comunhão em torno das coisas que se amam, que a autonomia é a soma da memória com os valores e que o verdadeiro poder político era um complexo de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso.
Porque estamos em zona daquilo que Pessoa qualificava como misticismo, onde entra o sentimento, a tal inteligência do desejo, "onde quem não pode observar, crê. Onde quem não pode calcular adivinha. E onde quem não pode pôr à prova profetiza. Porque aqui a poesia é mais verdadeira do que a história. E a história imaginada mais activa do que a história objectiva. Porque os povos todos fabricam uma representação histórica da sua própria personalidade, para justificarem a existência de comunidades de sonhos.
Porque as pátria têm raízes no passado, no chão moral da história e as boas nações são apenas escolas futuras da super-nação futura. Porque, continuando pessoanamente, importa o tudo pela Humanidade e o nada contra a Nação. Porque muito cassirermente, hão o símbolo, ou a cultura, as tais significaçãoes que ultrapassam a coisa e que iluminam os corpos políticos. O mito, a língua, a arte, a história. E pátria não é apenas a ideologia que justifica ou a utopia que subverte a ordem estabelecida, mas a terceira potência da alma, a imaginação, que vai além da razão e da vontade. Porque o tal imaginário, o tal símbolo, atravessa o discurso racional, ordena o seu simbolismo e subverte a pretensa lógica. E lá fui doutoral, muito Cassirer, Pessoa, Castoriadis, Voegelin, Ricoeur, Maritian, Duverger, Deutsch, onde apenas tentei parecer aquilo que sou, mostrando viver como penso.
Que hoje, no dia em que morreu Miguel Torga, em 1995, bastaria um poema deste para se confirmar que a poesia é mais verdadeira do que a história. Porque os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam (Lévi-Strauss), porque toda a razão tem um horizonte sobredeterminado por uma crença, havendo um ponto onde o racional comunica com o mítico (Ricoeur), porque os símbolos fazem parte integrante da realidade nacional(Voegelin), porque devemos dimitificar o mito, mas não fazer da demitificação um mito (Morin). Porque quando penso que penso não sou apenas eu que penso, mas os que pensaram antes de mim, para que eu me sinta pequena onda de uma corrente que me ultrapassa, para continuarmos a fazer história, mas sem sabermos que história vamos fazendo.
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