Não elevemos ao altar os heróis balzaquianos que apenas agitam verbalmente as quimeras em que queremos acreditar
No dia em que, no ano de 1689, nasceu Montesquieu, um dos tais fundadores da religião secular do Estado de Direito, e em que se comemora o começo da greve revolucionária da Marinha Grande, em 1934, onde a frustrada implantação do soviete local permitiu ao salazarismo liquidar o anarco-sindicalismo da CGT e dar ao PCP o monopólio da resistência operária, tentarei falar de outras coisas mais próximas do eu e das próprias circunstâncias que dele fazem “pensée” face a esse “mouvant”, invocando a minha religião cívica e saudando a ideia de resistência. Direi, em primeiro lugar, que têm sido significativas as manifestações de revolta ortodoxa com que nominativos militantes dos movimentos DPF (Deus, Pátria, Família) e TFP (Tradição, Família, Propriedade) me têm feito chegar, nomeadamente dos que confundem o MM (Movimento Monárquico) com a passada atracção salazarenta ou com a mais recente onda cavaca. Aceito as críticas, respeito-lhes a sensibilidade, não lhes subscrevo o credo, o beija-mão, a prancha, a procissão, o comício e a directiva.
Confesso que, além de tentar ser intelectualmente heterodoxo, sou um desses heréticos, da seita dos velhos-crentes, que escapou às fogueiras tanto da última como da primeira inquisição, incluindo a santa do ofício, dado manter a fidelidade estóica dos homens livres, que livres da finança e dos partidos, sempre foram fiéis às tais raízes greco-romanas a que o cristianismo costuma fazer apelo quando fala em homens de boa vontade. Por outras palavras, tanto não ando pelas derivas iluministas que geraram o agnosticismo, o progressismo, a utopia, a ideologia ou a revolução, como não frequento as feiras, ou alas, esotéricas que resistem à sexta-feira, dia treze, apesar de respeitar a memória templária, em nome de D. Dinis, e a Ordem de Cristo, em nome das caravelas do infante-grão-mestre.
Dizem, aliás, os especialistas em genealogia, que alguns genes de meus ancestrais padecem de pouca limpeza de sangue, porque, apesar da dominante moçárabe e cristã-velha em que se diluíram, eles derivam, como demonstra meu patronímico, de uma mestiçagem estrangeirada e ultra-mediterrânica de certo exotismo emigrante, já plenamente nacionalizado, tanto pela terra e pelos seus mortos, como pela comunidade de sonhos que a ideia alexandrina de império, com pluralidade de pertenças, tem permitido.
E é por esta geometria variável de afectos que continuo a subscrever o sonho daquele Portugal universal que nos levou ao tal abraço armilar que sempre foi reproduzir-nos em sucessivas pátrias de novos mundos a criar, diluindo-nos em todos os outros. Gostava de continuar a ser vagamundo do português à solta, sempre a varar as tormentas, com o objectivo de, global e planetariamente me circum-navegar, para descobrir que serei sempre um pedaço do transcendente situado.
E tudo medito ao raiar da aurora deste dia dezoito do mês primeiro do anos de dois mil e seis, na precisa data em que a minha escola comemora o seu centenário, magnificamente abrilhantado, logo, ao começo da tarde, com notáveis discursos de convidantes e convidados, com os quais me solidarizo.
E como as cerimónias contarão com a honrosa presença tanto dos altíssimos representantes da governação do Estado, como das não menos altas esferas da federação a que chamamos universidade, apenas recordo que nela nos integrámos apenas há pouco menos de meio século, até porque a dita só nasceu depois das partes que a integram, há três quartos de século. Logo, mais não tenho do que congratular-me com o vivório da missa laica institucional.
Mas porque todas as instituições continuam a ser mistérios e para poder continuar a ser fiel à perspectiva heterodoxa dos fundadores, que não são propriamente os subscritores do real decreto que instituiu a coisa, nem os pretensos criadores que, depois, a tentaram transformar em criatura, decidi, em nome da lealdade básica, não comparecer ao acto. Coisa que formalmente comuniquei a quem considerei que devia, como mero gesto simbólico de quem continua à espera que a instituição largue o lastro daquela razão de Estado que a fez escola de regime e reconheça os atentados à liberdade de cátedra e à militância dos homens livres que, em outras horas, de outros tempos, foi obrigada a cometer. Mais uma vez não quero ser homem de Corte. Prefiro continua a ter um só rosto e um só parecer.
Até porque também não participarei, pelas mesmas razões, no próximo cerimonial que elevará à dimensão da comendadoria, a atribuir pelo ritual do Estado de Direito, quem nunca respeitou a própria alma do Estado de Direito, coisa que considero sagrada na minha religião secular do civismo. Quero apenas dizer que não costumo vender a alma ao Diabo, mesmo quando este julga que o hábito e o penduricalho fazem o monge. Haverá cada vez menos tempo para elevarmos ao altar os heróis balzaquianos que apenas agitam verbalmente as quimeras em que queremos acreditar, através de verbais exercícios de salão e sedução, como ainda há dias li de alguém, a respeito de um lugar paralelo, ocupado em França pela memória de Mitterrand. E para terminar, aqui vai citação de almanaque, de outro nasceu neste mesmo dia, Alan Alexander Milne:"uma das vantagens de ser desarrumado é que se está sempre a fazer descobertas fantásticas..."
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