a Sobre o tempo que passa: Entre os desembarques de D. Miguel e D. Pedro e as homenagens por fazer a Paradela de Abreu e a Manuel Belchior

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.2.06

Entre os desembarques de D. Miguel e D. Pedro e as homenagens por fazer a Paradela de Abreu e a Manuel Belchior



Hoje, aqui em Belém, no ano de 1828, desembarcou o senhor D. Miguel, tal como quatro anos depois, seu mano, D. Pedro, também nesta data, desembarcaria na ilha de São Miguel, para repor no trono a Rainha Menina, sua filha D. Maria da Glória, para que, entre estes desembarques, o povo se andasse a matar numa estúpida guerra civil, provocada pelos balanços da balança da Europa que fez dos nossos príncipes meras peças de um xadrez, onde só por milagre Portugal escapou independente.


Se, entre Pedro e Miguel, prefiro o que o segundo disse ao primeiro, em carta de exílio ( "por ti, esteve a inteligência sem honra, por mim, a honra sem inteligência"), já sou claramente partidário de D. Maria da Glória contra D. Carlota Joaquina, porque sou mais brasiliense do madrilófilo e mais adepto da aliança com britânicos e franceses que dos agentes da Santa Aliança, com prussianos e russos. Daí que acabasse por ter de desembarcar no Mindelo, em regime de estado de necessidade, embora preferisse poder ser um miguelista liberal, isto é, um joanino, mais adepto de Silvestre Pinheiro Ferreira que de Palmela e ferozmente anti-carlotista e anti-devorista. Sou azul e branco e gosto do perfil de Herculano.



Recordo também que neste dia, do ano de 1974, era posto à venda o livro de António de Spínola, "Portugal e o Futuro", onde o general e o respectivo editor, um tal Paradela de Abreu, fizeram mais contra o regime do Estado Novo que já estava velho do que muitas dezenas de antifascistas de café e pose. O falecido Paradela, tão lusitanamente instável quanto era legionário, mas da Legião Estrangeira, ou aluno da velha Escola Colonial, agora dita ISCSP, a tal que faz cem anos e é a minha escola, cumpriu assim sua missão de libertacionista e, continuando fiel aos seus impulsos, há-de voltar a ser, durante o PREC, um operacional antitotalitário, assumindo alguma liderança no movimento Maria da Fonte.



Daí que os historiadores da vindicta o continuem a dar como chefe da "extrema-direita", nesses delírios habituais entre os frustrados do Maio de 68 que nunca hão-de perceber personalidades complexas como os falecidos Paradela ou Costa Gomes, preferindo conversas de salão com ex-ministros do Salazar que, detentores de altos tachos burocráticos nos regimes seguintes, tentam dizer, à maneira estalinista, que os heróis são sempre o asco traidor dos Talleyrand.

Por mim, prefiro os Paradela que perderam sempre, deixando que o povo ganhasse. Até mantenho integrais simpatias pelos Spínola e pelos Salgueiro Maia. E não me esqueço do grande inspirador doutrinário do livro que derrubou Salazar e Caetano, Manuel Belchior, o grande consultor de Spínola em matéria de política africana, que foi desapossado do título de doutor por manipulação decretina, só porque tinha simpatias marcelistas.



O velho Belchior, o apaixonado pelos povos islâmicos da Guiné-Bissau, de fulas e mandingas, bem merecia que o recordassem, especialmente num momento em que até nos falta a dimensão de um general Pedro Cardoso, para nos honrar os muitos soldados islâmicos que deram a sua vida pela bandeira portuguesa. Só com honra e inteligência podemos interpretar as relações entre humanismos maçónicos, cristãos e islâmicos, neste país que tanto foi azul e branco como é vermelho e verde, sempre em nome da armilar.

O problema português continua a estar na circunstância de não sabermos casar a honra com a inteligência, a pátria com a liberdade e a justiça com a eficácia na gestão. A nossa grande estupidez continua a estar nas estalinistas literaturas de justificação dos revisionismos históricos e na consequente história dos vencedores, que não atinge a humaníssima perspectiva das memórias de libertação e das consequentes comunidades de amor. E ninguém resolve estas complexidades com as simplificações ideologistas de quintal, porque, na prática, a teoria é outra e quem lê livros de teóricos miguelistas e pedristas, ou de marcelistas e antifascistas, se lhes tirar as capas, os nomes dos autores e os carimbos diabolizantes, confundirá as páginas e até pode acreditar nas biografias que os sobrinhos escrevem sobre os tios ou os afilhados sobre os padrinhos nas enciclopédias e dicionários históricos que precisam de subsídios de ministros e fundações para serem editados.

A não ser que trate de frequentar um desses mestrados de sacristia saneadora, abençoando a extrema-esquerda que agora faz genuflexão aos novos donos do poder, com muito protestantismo importado, dito "neolib", e algum providencialismo reaccionário de pacotilha, dito "neocon", para pretender descobrir o que já está descoberto, sem saber quem foram os "british liberales" (sic) ou que "The Federalist" foi traduzido por um miguelista exilado no Brasil, ainda antes do século XIX chegar ao meio.