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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.6.06

Contra a canalhocracia que nos vai bonzando, entre endireitas e canhotos, que são bastardos da mesma decadência...

Hoje, sem novas significativas vindas de Marienfeld e com pouco mais de uma centena de GNRs pacificando Timor, segundo um duplo espectáculo televisivo que criou, nos dois lugares, a ilusão do veni, vidi, vinci que antes de o ser já o era, prefiro assinalar duas efemérides: o desembarque na Normandia do dia D, no ano de 1944, e a circunstância de D. Pedro V, no ano de 1856, ter chamado a oposição a governar, instaurando o pluralismo na monarquia liberal, numa atitude semelhante à que o povo provocou em 1979, com a vitória da oposição de direita, coisa que não aconteceu com a I República, pois a primeira vez que os oposicionistas venceram umas eleições, em 1921, logo se promoveu o assassinato de António Granjo, o jovem e talentoso líder de um governo liberal anti-afonsista, que se opunha aos bonzos do situacionismo.

Recordando o nosso D. Sebastião liberal, importa assinalar que o filho de D. Maria II, atingiu a maioridade em 10 de Setembro de 1855, terminando a regência do pai, D. Fernando. O novo rei desconfiava muito dos três homens fortes da governação, Saldanha, Fontes e Rodrigo da Fonseca, qualificando-os como a canalhocracia. Chegou mesmo a dizer que Fontes era um pavão por vezes até inconveniente e ameaçador.

Estávamos num tempo em que Auguste Comte fazia o seu Appel aux Conservateurs, definindo-os como os que pretendiam conciliar a ideia de progresso, nascida da revolução, com a ideia de ordem, oriunda da tradição, mas sem cedência aos jacobinos e aos adeptos da restauração, pelo que defendia a révolution d'en haut, a necessidade de uma ditadura nomocrática visando a instauração da sociedade positiva, bem antes de haver reforma de Bolonha, eurocratas, planeadores e reformadores encartados do Estado e do sistema político que, no fundo, são sempre a mesma coisa, isto é, a mistura do despotismo esclarecido com vanguardismo de revolucionário frustrado, ao ritmo do português suave, em cujas veias corre o célebre capilé, como dizia o outro.

Até nem sei se vale a pena recordar que o grande constitucionalista da pseudo-Europa, o ti Valéry Giscard, d'Estaing e tudo, tem, entre outros títulos, a presidência do Instituto Augusto Comte, tal como o nosso MNE, o ti Diogo do Ex-Centrismo, quando era líder partidário, antes de entrar em desavença com Cavaco, por causa das dívidas da campanha presidencial, promoveu a criação de um Instituto Fontes Pereira de Melo, que fazia cursos de formação europeia acelerada e de cuja incubante politiqueirice nasceram as desavenças entre a Teresa Costa Macedo e o Manuel Damásio, donde derivaram as forças geradoras de uma das principais universidades privadas lusitanas que não tem ligações divinas nem subsídios do Estado.

D. Pedro V bem recordava que a oposição é uma condição essencial dos governos representativos, e todo o ataque que se lhe dirige é um ataque que vai recair sobre as próprias instituições, quando recusou a Saldanha uma fornada de pares. E tudo acontecia no ano em que Henriques Nogueira (1825-1858) publicava O Município no Século XIX, obra fundamental para a posterior doutrinação republicana, onde reconhecia que o Estado tributa e consome; o país contribui e definha. O expediente dos mais simples negócios dilata-se e complica-se. O número dos empregados públicos cresce: o dos funcionários gratuitos diminui. A massa dos impostos, repartida por quem não sabe o que eles custam, é prodigamente gasta.

E D. Pedro V recusava a Saldanha uma fornada de vinte pares, porque seria criar uma tirania sob o aspecto exterior da legalidade. Já Saldanha, não tendo maioria na câmara alta, invocava a necessidade de apoio para a aprovação de um empréstimo de dezasseis mil contos negociado junto de Londres por Fontes Pereira de Melo. E Saldanha que boiara sempre à mercê dos acontecimentos, vai dar rótulo a muitas companhias, dado que sonhava fortunas, dividendos, riqueza para toda a sua família de pedintes (Oliveira Martins). O rei optava por outra via, a de considerar que a oposição é uma condição essencial dos governos representativos, e todo o ataque que se lhe dirige é um ataque que vai recair sobre as próprias instituições


O temperamento melancólico e pessimista do novo rei preferia esta gente antiga (de Loulé, seu tio-avô) aos regeneradores modernos e moços, cujo materialismo não agradava à metafísica régia (Oliveira Martins). Hoje não há D. Pedro V, dado que na presidência está Fontes Pereira de Melo, o dos fontanários e das estradas de macadame, subsidiadas pela ex-CEE, que, em certa altura, venceu a candidatura do octogenário duque de Saldanha, esses irmãos-inimigos, dotados dos mesmos fusíveis mentais que, geraram, à respectiva imagem e semelhança, uma falange de bonzos situacionistas que, apesar de mais tenros em idade, são tão velhos quanto a gerontocracia donde emergiram, quando, brincando à conspiração de avós e netos, monopolizaram a oposição e a situação. Preferia que voltasse António Granjo sem Noite Sangrenta, porque tanto odeio a ideologia comteana da revolução a partir de cima, como o seu inverso dos PRECs, incluindo os tecnocráticos.



Aproveitando a deixa, não posso deixar de citar um mail recebido que Pedro Valente que, depois de uma interessante conversa que mantivemos, descobriu uma citação de Rodrigues Sampaio, na altura Vice-Presidente da Câmara dos Senhores Deputados: porque eu quasi que me chego a assustar de que acabe o deficit entre nós, com medo de que, acabando elle, acabe o systema parlamentar!”. In Acta da sessão da Câmara dos Senhores Deputados, de 10 de Junho de 1867, p.1874.

Como o Dr. Pedro Valente me confessa, demorei um bocadinho a confirmar a citação e a fonte porque se trata de um período em que as actas parlamentares foram publicadas no Diário de Lisboa e não estão ainda completamente digitalizadas. Porque tal frase precede em mais de meio século a linha, mais conhecida, de Armindo Monteiro: “A história do deficit é a história das finanças portuguesas”. Com efeito, este último tem a capacidade de resumir, em cinco palavras, o debate em redor das finanças públicas portuguesas. Mas a citação de Rodrigues Sampaio tem uma força profética fabulosa.