a Sobre o tempo que passa: Sobre a mão invisível e os homens livres que fazem a história

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.6.06

Sobre a mão invisível e os homens livres que fazem a história



Há dias em que, quando começamos a bloguear, não sabemos que linhas nos acontecerão neste escrever-nos todos os dias. Sabemos apenas que anteontem se comemoraram os dezassete anos dos acontecimentos de Tian An Men, coisa que aconteceu um pouco antes da queda do Muro, e, agora, reparamos que, tudo como dantes, com o homem de sempre, sem fim da história, com os américas a fingir que mandam no mundo, com os comunistas sem ideologia a policiar a China e com muitos outros "big brothers" a continuar este "animal farm", de um capitalismo sem freio gerido ou ditatorializado por socialistas de muitas características, incluindo o barrete de saloio e os olhos em bico, nomeadamente o de papagaio.

Por mim, que sempre fui pouco dado a exotismos regeneradores, chamem-se cientismos, cursos de cristandade, esquerda revolucionária, espiritismo, budismo ou numerologia, tenho agora de enfrentar esta cultura dominante da globalização, esta moda que demora a passar de moda e que, desde o pós-guerra, nos tenta unidimensionalizar de forma "hollywoodesca", mesmo quando se disfarça em teses de doutoramento ou crítica literária.



Ainda ontem, quando devíamos comemorar a golpada cavaquista que levou o PSD a romper com o Bloco Central, em 1985, reparámos como nos emocionámos tanto com a chegada da selecção de futebol de Scolari aos sítios onde se assinaou o Tratado de Vestefália como com a aterragem da GNR a Timor, aí saudada por Ramos Horta, um prémio Nobel da Paz, feito ministro da defesa. Fazemos da bandeira e da bola a nossa identidade e tudo sublimamos com um eventual golo de Ronaldo ou uma bastonada policial no dorso de um desordeiro, como se o futebol não fosse a continuação da guerra por outros meios e esta uma ilusão de jogo sem regras.



Sinto que, entre o poder-ser e o ser, entre as expectativas e as realizações, continuamos um império frustrado que vai de Baucau a Marienfeld. Mas Scolari tanto não vai ser o húngaro Bella Gutman, como nem sequer pode atingir a dimensão magriça de Otto Glória. Já não somos pátria de Vicente e Eusébio e na Académica já não joga o macaísta Rocha. O velho futebol lusotropical, desse imenso império colonial, apenas serve de breve droga para o infinito silêncio desta frustração, onde só alguns sinais de mistério nos revolvem.




E não é por acaso que a geração grisalha que nos governa foi buscar o "slogan" regenerador a John Kennedy, para termos a ilusão salvífica dos "action men". É por isso que reparo em duas efemérides de hoje: o assassinato de outro Kennedy, o Robert, em 1968, e o nascimento de um tal Adam Smith, no ano de 1723. O tal que em 1776 publicou An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, onde, numa simples nota de pé de página, considerou que há uma espécie de ordem onde o homem é levado por uma mão invisível a apoiar um objectivo que não fazia parte da sua intenção.



Mas o que dele ficou foi, sobretudo, o que viríamos a designar pelo princípio hedonístico do interesse pessoal, segundo o qual os homens procuram melhorar a sua situação económica, procurando o máximo de satisfação com o mínimo de esforço, salientando que os motivos egoísticos e a espontaneidade das instituições realizam inconscientemente a providência. Porque Deus escreveria direito por linhas tortas, a coisa mais próxima de tal pré-liberalismo protestante tem a ver com o acaso procurado do bushismo que, entre nós, vai sendo traduzindo por vanguarda pelos chamados "neolibs" e "neocons" que, invandindo a chamada direita, me fazem fugir dela como Mafoma do toucinho, perdoe-nos o presidente do Irão, que não quis dizer diabo da cruz, para não irritar os crentes cá das alfurjas.



Sou mesmo liberalão, mas de outra família menos providencialista. Considero que não é a história nem Deus que fazem a história, mas o homem, os limitadíssimos homens que, somando individualismos de sonho, razão, vontade e imaginação, conseguem escrever a história, mesmo sem saber que história vão fazendo, onde a mão invisível não é a da Providência, mas dessa criação divina que é a liberdade de cada um e todos os homens que assumam a humildade de servir de simples operários de correntes profundas que atravessam a história, feita, assim, co-criação de homens livres.