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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.11.07

Retalhos de uma metafísica de bairro, em dia de feriado



Há muito tempo que não tinha tempo para perder meu tempo no prazer da leitura de um livro, sem obrigação de ler tal livro. Por isso, indo à estante ao calhas, peguei em textos de Ramalho Ortigão sobre glórias do último quartel do século XIX. E quase apetecia repetir as farpas que lançou sobre a Universidade e a Carta, onde confirmei que, há muito tempo, já éramos o que continuamos a ser. Reparo que hoje continua a ser tempo de mortos que um quarto de hora antes de morrerem ainda estão vivos, especialmente quando Luís Filipe Menezes tratou de organizar um evento que vai reunir quinhentos ex-governantes do PSD dos últimos trinta anos, assim demonstrando como o respectivo partido, por mais que disfarce, disputa o "podium" do sistuacionismo com o Partido Socialista. Boa sorte para esse mais do mesmo!






Por mim, prefiro reparar no tempo do cair da folha e no prazer das castanhas, das quentes e boas, bem como das romãs, vermelhas e ferrosas, enquanto vamos carregando sacos de azeitona galega para o lagar do ti Samarra. Prefiro assinalar, na agenda, que todos os dias podemos notar os mesmos sinais do tempo. Para os que gostam de imagens, deixo três: a da minha rua, hoje; a de um vizinho da mesma, há século e meio, que até deu nome a um palácio hoje quase em ruínas (Burnay); e a terceira, a velha senhora universitária que o Gago diz que anda a reformar... mas a velha é teimosa!


Porque o discurso que mais apetece é o que nos sai de dentro e por dentro. Mesmo quando apenas experimentamos uma nova caneta, comprada ao acaso numa qualquer loja de um qualquer chinês, situada na esquina de uma qualquer cidade que seja minha, num lugar qualquer do mesmo mapa unidimensionalmente consumista desta aldeia global.




Porque, com apenas cinquenta cêntimos, comprámos mais uma agendinha, tipo "notebook", funcionalmente igual a um "moleskine", com a qual tentamos rabiscar as íntimas impressões que nos vêm das profundas individuais, quando, matinalmente, nos passeamos pelas circunstâncias, sob o pretexto de irmos tomar uma bica e um sumo de laranja aos limites do bairro que escolhemos para viver. Sobretudo, quando o sol nos diz que, afinal, ele ainda é igual para todos, como sempre foi.


E lá vamos praticando a metafísica de darmos uma volta com a cadela, por entre as árvores e as relvas, em sítios onde nos cruzamos sempre com o nosso habitual pedinte de moedinhas e de cigarros, que, todos os dias, em alta voz nos transmite pedacinhos de um discurso ensaiado. Por outras palavras, sabe tão bem haver dias de pausa, para irmos ao café pedir, ao senhor Abreu, uma bica e uma meia de leite. vale-nos que hoje voltámos a ver o Giorgio, nos seus louros dois aninhos, que nos vem visitar, com o ultramontano som desta Europa unida, e até tive tempo para conversar com a minha filha Joana, lá no mar da Escócia, a contar-me novas da sua plataforma petrolífera. Que venha o próximo feriado, com a sua metafísica de todos os dias. O mais além é sabermos e sentirmos que por dentro das coisas é que as coisas são.