a Sobre o tempo que passa: Breves conselhos aos ilustres governantes que têm a espada na mão direita e o báculo na esquerda

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.4.08

Breves conselhos aos ilustres governantes que têm a espada na mão direita e o báculo na esquerda


Agradeço às venerandas figuras dos senhores intendentes do estadão esta magnífica instauração da segurança, onde funciona o vigoroso princípio do salus populi essa suprema lex, onde se venceu essa anterior guerra perpétua de cada homem contra outro homem, onde tudo, felizmente, pertence àquele que conservar a força. Viva este nosso querido estadão, construído pela arte do homem. Ele é belíssimo porque imita a arte de Deus. E com ele se venceu a irracionalidade do estado de natureza. Porque a razão é filha da necessidade e a medida do direito é a utilidade. Logo, a própria liberdade tem de ser entendida como mera ausência de obstáculos externos, dado que domina o medo da morte, o desejo de conservação e a luta pela vida.


Não há dúvida: o que move os homens é o amor próprio, a vaidade, a inveja, a vã glória de mandar, o desejo de fazer reconhecer a sua superioridade relativamente aos seu vizinho. Logo, não pode deixar também de se perspectivar o pacto social como algo que se contrai por utilidade ou por ambição, traduzindo-se numa alienação de direitos subjectivos.


No estado de natureza, porque, cada um contratava com cada outro, para renunciar ao respectivo direito ilimitado, a única garantia do contrato era o castigo que devia sancionar qualquer violador do contrato. Felizmente, os homens abandonaram o estado de natureza e surgiu o Direito e o Estado, surgiu a noção do meu e do teu. Assim , o Estado existe para a segurança dos indivíduos, dos particulares.

Temos, portanto, que entender o Estado a que chegámos como um deus mortal, um homem artificial, criado por aquela arte do homem que imita a arte pela qual Deus criou o mundo e o governa. Só assim o nosso querido Estado pode consistir numa multidão de homens unidos na ficção de uma só pessoa, que os representa a todos, transformando as forças ou potentiae (os direitos naturais dos indivíduos) na autoridade civil ou Potestas (o poder soberano). E isto porque pela arte é criado aquela grande Commonwealth ou Estado (Civitas em latim)...


Agora, a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, juntas artificiais; a recompensa e o castigo ( pelos quais, ligados ao trono da soberania, todas as juntas e membros são levados a cumprir o seu dever) são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a riqueza e a prosperidade de todos os membros individuais são a força; Salus populi ( a segurança do povo) é o seu objectivo; os conselheiros.... são a memória; a justiça e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a doença; e a guerra civil é a morte.


O nosso querido Estado é como o monstro bíblico marinho do Livro de Job e pode ser simbolicamente representado por um gigante, feito de uma imensidade de seres humanos, com uma cidade debaixo dos pés. O gigante tem sobre a cabeça a sentença bíblica non est potestas super terram quae comparetur ei, enquanto segura, na mão direita, uma espada, o símbolo do poder civil, e, na mão direita, um báculo, o símbolo do poder religioso.


Assim, a sociedade civil passa a ser entendida como um corpo de que o soberano é a alma. É o soberano que dá movimento ao corpo, tal como através da alma, o homem possui uma vontade.


Qualquer engenheiro de pontes sabe, de ciência certa, o que é o construtivismo mecanicista, onde se concebe um estado artificial, produto de um artifex, do homem que calcula e que constrói. Antes, apenas havia um brutal estado de natureza, perspectivado como o estado da psicologia egotista de qualquer homem. De corpos que se atraem e repelem, não por causa de Deus e do Diabo, mas pelas vontade de cada um, onde a vida dos homens é solitária, miserável, suja (nasty), animal (brutish) e breve (short).


Agora, não! Temos o conceito que é preceito, essa regra geral, descoberta pela razão, através da qual é proibido aos homens fazerem o que os pode conduzir à destruição da sua vida. Porque o que verdadeiramente move os homens é o medo da morte, o desejo de conservação, a luta pela vida. Assim, a razão tem de ser considerada filha da necessidade e a utilidade, perspectivada como medida do direito (mensura juris).


Deste modo, podemos explicar a moral, a política e a física a partir do movimento e da causalidade mecânica, consistindo numa imbricação das causas e dos efeitos, num encadeamentro de movimentos que fazem do mundo e do próprio indivíduo meros mecanismos.


Na verdade,a força é entendida como um meio para um determinado fim, sendo natural que se conceba o poder como um processo de acumulação, identificando boa sorte com honra e a má sorte com vergonha. Neste sentido, podemos definir a lei como a palavra de quem tem o direito de comandar os outros.


A própria liberdade deve entender-se em sentido mecanicista, como ausência de obstáculos exteriores. Ao mesmo tempo, tem que se considerar o direito como a liberdade de fazer uma coisa ou de a não fazer.


A comunidade política passa assim a ser entendida como simples delegação da força, algo de temporário e limitado que não muda o carácter solitário e privado dos indivíduos e que nem sequer lhes cria laços permanentes.


Basta utilizarmos os conceitos das ciências físicas, considerando a natureza humana como um corpo no domínio dos corpos, como um conjunto de forças que agem e reagem em contacto com outras forças.


Há que manter o recatado pessimismo antropológico, considerando que mesmo em regime de paz civil o que move os homens é o amor próprio, a vaidade, a inveja, a vã glória de mandar, o desejo de fazer reconhecer a sua superioridade relativamente aos seu vizinho, não pode deixar também de perspectivar que o pacto social se contrai por utilidade ou por ambição, traduzindo-se numa alienação de direitos subjectivos.

No estado de natureza, porque, cada um contrata com cada outro para renunciar ao respectivo direito ilimitado, eis que a única garantia do contrato é o castigo que deve sancionar qualquer violador do contrato

Só quando os homens abandonam o estado de natureza é que surge o Direito e o Estado, a noção do meu e do teu. Assim , o Estado existe para a segurança dos indivíduos, dos particulares.

Porque onde não há República existe uma guerra perpétua de cada homem contra o próximo: tudo pertence, portanto, àquele que obtiver e o conservar à força. Aí, o homem é lobo do homem, dado haver uma guerra de todos contra todos, bellum omnium contra omnes.

O senhor Estado tem de ser entendido como uma persona civilis como uma pessoa é aquele cujas palavras ou acções são consideradas quer como dele próprio,quer como representando as palavras e as acçöes de outro indivíduo ou de outra qualquer coisa.

Com efeito, a potestas, o poder soberano, vai substituir‑se às potentiae, aos direitos naturais dos indivíduos e o Estado assume‑se,assim, como persona civilis. É uma única pessoa cuja vontade, em virtude dos pactos contraídos reciprocamente por muitos indivíduos se deve considerar a vontade de todos estes indivíduos.


Ora sendo a vontade de todos reduzida a uma só ela pode ser considerada como pessoa única distinguível e reconhecível com um único nome por todos os indivíduos.

É que se para alguns todo o soberano está para o Estado como a cabeça está para o resto do corpo, agora, a soberania é muito mais do que isso, é a alma: através da alma o homem possui uma vontade.