a Sobre o tempo que passa: Reflexões sobre a autoridade, o presidente e o resto, pedidas por um jornal

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.4.08

Reflexões sobre a autoridade, o presidente e o resto, pedidas por um jornal


O terceiro presidente da república civil, eleito por sufrágio universal, continua na senda dos seus dois antecessores, sem manifestar o direito à indignação de Soares, mas continuando muitas das heranças de notário da república, de Sampaio. Também sem inovar, no tocante à política de coabitação, já praticada pelos paradigmas anteriores, compreendeu que a presidência é o órgão de soberania português com mais confiança pública e que, para tanto, deve cultivar a autoridade, sem se imiscuir a nível dos poderes, transformando-se numa espécie de sucedâneo dos reis constitucionais, mas sem usar das potencialidades do velho poder moderador que se desprestigiou com o nosso rotativismo.

Com efeito, a presidência da república, assente no velho conceito romano de "auctoritas", que cabia ao Senado, mantém, no essencial, a ideia de que ele é o "mais velho", não pela idade, mas porque assenta no fundador da comunidade e nos sucessivos refundadores dos regimes. O presidente, ao colocar-se no lugar clássico da acumulação do poder comunitário, tanto assume a memória identitária de D. Afonso Henriques, como tem a legitimidade carismática de 1820, dos revolucionários do 5 de Outubro, ou dos capitães de Abril, produzindo, sobretudo, actos simbólicos bem mais importantes do que as conversas semanais com o Primeiro-Ministro, as eventuais recusas de promulgação de diplomas legislativos, ou o uso da bomba atómica da dissolução.

Logo, a chamada gestão dos silêncios, especialmente em épocas de crise de confiança nos políticos, como aquela em que vivemos, pode ajudar a unir o Estado-Comunidade contra a secura do poderio do chamado Estado-Aparelho de Poder. E Cavaco já compreendeu esta missão, contrariando as perspectivas dos que o anunciavam como potencial fautor de uma espécie de golpe de Estado constitucional contra o ilusório "povo de esquerda".

Podemos dizer que, se até agora, deu ao socratismo o necessário espaço de estado de graça e não se avizinhando qualquer espécie de sombra com o poder governamental, com o consequente conflito institucional, transformando-se numa espécie de força de bloqueio, muitos esperam que, sem sair da autoridade, lance sinais de resistência comunitária ao vazio de república que nos ameaça, especialmente contra os dois principais sitiantes da democracia: o indiferentismo e o fenómeno da corrupção, ou compra de poder, sob pena de se estabelecer um profundo divórcio entre a chamada sociedade civil e o tal aparelho de poder que herdámos do absolutismo.


Por outras palavras, esperemos que Cavaco-presidente se esqueça que foi Cavaco-chefe do governo e que tenha a coragem de fazer uma espécie de autocrítica ao seu passado político. Porque o pior do socratismo a que chegámos resulta das sementes lançadas pelo cavaquistão da maioria absoluta, até nas ilusões das chamadas reformas estruturais da pseudo-modernização da "révolution d'en haut". Apenas lhe desejamos coragem nessa luta contra o heterónimo que provocou o direito à indignação de Soares e gerou a paralisia notarial de Sampaio. E que não dê ares de ver em Sócrates o sucessor que não teve no PSD, ou em Teixeira dos Santos, uma espécie de Manuela Ferreira Leite sem saias.


A maior parte dos factores de poder já não são nacionais, ou domésticos e o presidente, preso na autoridade, mas sem poderes, não tem condições para utilizar os restos de poder moderador que ainda possui para alterar as regras do jogo deste situacionismo de oligopólio partidocrático, dado que ele próprio é uma consequência dessa causa.


A não ser que aconteça o imprevisível de uma crise importada e que já não seja a pilotagem automática da chamada governação e que essa crise leve a uma espécie de interregno do mais do mesmo PS/PSD, surgindo uma regeneração de baixo para cima, do Estado-Comunidade para o Estado-Aparelho de Poder, isto é, da república para o principado da governação. Não se vêem, contudo, sinais de uma temperatura espiritual regeneradora, dado que o sistema de controlo da opinião pública depende mais dos patrões da comunicação social que detêm os dossiês que poderiam abalar o situacionismo, mas que os vão negociando em trocas neofeudais.