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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.4.08

Mas se acaso, tirana, estrela ímpia, é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.



Vejo, na nossa querida televisão, uma viagem pelo mundo inédito de coisas que têm mais de duzentos anos e que parecem incomodar coisas que têm mais de dois mil anos. Apenas devo concluir que assim nunca mais poderemos compreender a democracia daquelas revoluções atlânticas que tanto produziram a glorious revolution dos finais do século XVIII, como a república norte-americana, ou as sucessivas repúblicas francesas, para não falar em Cádis, de 1812, Portugal, de 182o, na antiquíssima luta pela constituição. A política, enquanto sinónimo de democracia, sempre se deu mal com as usurpações da teocracia, do império ou do despotismo económico.

Quando a episcopal figura do porta-voz daquela magnífica corrente que, desde 15 de Maio de 1891, no século XIX, se passou a conjugar com esse esforço demoliberal, critica os maçons por permanecerem numa mentalidade do século XIX, sou obrigado a protestar, porque talvez eles sejam um pouco mais antigos, correspondendo a uma mentalidade do século XVIII, geradora dessa comunhão de causas que levou o maçon Jean Monnet a dar as mãos aos agentes vaticanos, tipo Robert Schuman, Konrad Adenauer ou De Gasperi, para o lançamento de nova revolução que está na base do projecto europeu.


Com todo o nihil obstat, fiquei ontem a saber que o cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira sempre foi um resistente antifascista e que só não deu o salto conspiratório contra o Estado Novo porque teve medo das represálias de um Salazar, que tinha dado à maçonaria o controlo da educação!!!! Perante tão benzido revisionismo histórico, resisto em não me submeter a tal literatura de justificação que procura o monopólio interpretativo na relação com o transcendente. Prefiro o pluralismo dos deuses, a heresia e os protestos. Penser c'est dire non!


Temo que, sorridentemente, regressemos a certo tipo de relação entre o báculo e a espada, como a que levou um tal António José da Silva a ir para a fogueira em Lisboa, no dia 18 Outubro de 1739, quando apenas tinha 34 anos. E cá o subscritor deste protesto, orgulhosamente filiado na corrente de Erasmo, Montaigne, Espinosa, Montesquieu, e Kant, apenas vos deixa algumas das sentidas palavras do autor da "Guerra do Alecrim e da Mangerona", preso pela Inquisição a 5 de Outubro de 1737:




Que delito fiz eu para que sinta
o peso desta aspérrima cadeia
nos horrores de um cárcere penoso
em cuja triste, lôbrega morada
habita a confusão e o susto mora?

Mas se acaso, tirana, estrela ímpia,
é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.
Mas se a culpa que tenho não é culpa,
para que me usurpais com impiedade
o crédito, a esposa e a liberdade?


Imagem e poema picados em Rua da Judiaria