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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

13.11.08

Uma enfermeira timorense, um médico iraquiano e duas bolas enceradas e castanhas que me entupiam ouvidos alfacinhas e só me davam eco


Acabei de sair do Hospital Nacional Guido Valadares, aqui de Dili, depois desta minha sina de, quando vivo em regiões tropicais, ficar afectado dos ouvidos. Já assim foi em Brasília, voltou a acontecer em Timor e lá tive que recorrer aos serviços públicos de saúde, já que o belo serviço de apoio à cooperação portuguesa, com médico, enfermeira e consultas melhores que lá do médico de família, apesar de também serem públicos, me aconselhou a ir ao especialista, detectando a causa dos meus males. E lá fui, sem renitência, visitando um mundo normalmente esquisito, como quando quebrei um braço em Leninegrado e com raios X, puxões e geladinhas de liquidificação, fiquei curado, porque, em ortopedia, russo é especialista. Ou quando tive que ir ao hospital de Macau por outras avarias canalizadoras, junto de um médico vietnamita que me queria operar em 24 horas. Ou então, quando em Brasília, já do Lula, fui a médica convencionada que me descobriu estas otomaleitas. 



Posso dizer-vos que, depois da breve intervenção, onde doutor iraquiano olhou, entrou nos canais e limpou cá meus aparelhinhos auditivos, voltei a poder sentir os passarinhos e os lagartos e só tenho que agradecer à enfermeira, Maria Filomena Carmo e ao tal clínico da Mesopotâmia que me atendeu, do alto da sua experiência de setenta e quatro anos. O cubano só chegava uma hora depois e os chineses andavam noutras especialidades. Meus ouvidinhos eram como os velhos pirolitos, tapados com dois berlindes, dada a minha "ceráfica" tendência para fazer concorrência às abelhas...

Com efeito, todos aqueles preconceitos sobre a saúde do terceiro-mundo seriam bem desfeitos com esta volta por uma instituição, Hospital Nacional Guido Valadares, fortemente apoiada pela União Europeia, mas com mãos dadas de todo o mundo, com cooperantes que assim praticam a defesa da dignidade da pessoa humana, porque todos somos efectivamente iguais em corpo e alma, bactéria ou vírus. Há gente mesmo igual a toda a gente, em todo o lado, sempre velhas senhoras de cabelo apanhada como andava a minha avó que também não sabia ler nem escrever, mas que conservava a nobreza do silêncio digno. Obrigado, sôtor iraquiano, que me permitiu voltar a poder ouvir inteiro, depois de três dias de quase surdez, por causa de dois berlindes grandalhões, bem encerados e sequinhos que tudo transformavam em eco, até as minhas próprias palavras.