A maior parte dos portugueses não lê blogues. E com toda a razão, se forem a dar crédito ao presidente António Costa que classificou este modo de comunicação da viragem do milénico como o vazadouro do submundo. Por acaso, eu também não os leio como deve ser, porque criei a minha própria rede de selecção e de diálogo na praça pública e quando, todos os dias, dou o meu passeio matinal, encontro os companheiros que fazem parte da minha comunidade de significações partilhadas e que, comigo, têm os lugares comuns que me permitem o diálogo.
Mas gosto particularmente de acordar de madrugada, nas seis horas da manhã de Timor, que equivalem às dez da noite aí da véspera. E gosto de o fazer, nesta época das chuvas nocturnas, para poder sentir o sol a lavar a manhã e a passarada vencer o som das osgas e fazer sorrir o pátio de pequenas pedras trazidas da praia, quando ele é diligentemente varrido pelas vassouras feitas de folhas de palma. Gosto deste momento de solidão, antes de espreitar os jornais do dia. Antes de preparar as aulas que irei dar. Antes de registar os tópicos das aulas que aí vêm. Antes de ler as recensões semanais a que obrigo os alunos. Antes de começar a ler os trabalhos de campo que eles escolheram. Antes continuar os trabalhos de sapa que tenho em mão.
Recordo alguns dos devaneios da aula de ontem e até reparo que, se tivesse que preencher a ficha da Rodrigues e do Valter, não sei onde incluiria a coisa que foi viver metade da aula fora do programa por causa do "quodlibético" provocado por alunos que sabem muito mais do que o professor, como é o caso do meu aluno, reitor da Universidade e a quem eu devo apenas transmitir apenas as metodologias da minha área científica. Porque todos acabámos por pensar a República Timorense a partir do pensar o direito. Porque até acabei por me socorrer do tópico do discurso de Péricles sobre a fundação da democracia em Atenas, em nome do regresso soldado morto pela pátria.
Com efeito, eu poderia imaginar no mundo Estados em abstracto, todos eles bem governados pelos "proceedings" da boa governação global, estabelecidos por organizações internacionais, desde o PNUD à Transparency International. Até poderíamos fazer concursos públicos internacionais sobre empresas de consultadorias, disponíveis para a governação, que nos fariam excelentes leis e nos trariam ministros mais competentes do que a maior parte dos dos que temos no mostruário lisbonense das tomadas de posse em Belém e na Ajuda, onde o importante não é ser ministro, mas tê-lo sido. Bastava encimar este bolo apátrida com a cereja de um qualquer Sócrates ou de um qualquer Xanana, para lhes dar a cor "typical" da selvajaria local, com danças tradicionais ou fotografia nos Jerónimos. Candidatos a caixeiros viajantes desta "good governance" não faltam e muitos antigos políticos e burocratas desempregados estão perfeitamente disponíveis para estes chorudos financiamentos.
Só que a política não é apenas feita de "state building". Há outra coisa bem mais complexa. O invisível laço que nos dá comunhão em torno das coisas que se amam. A chamada identidade, ou nação, a tal comunidade das coisas que se amam, que faz, de uma população, um eu em ponto grande como "moi commun"; que faz, do território, uma pátria; e que faz, dos governos e dos parlamentos, uma paixão identitária de luta de facções, plena de institucionalização de conflitos, que bem podem ser os de uma dessas democracias que nacionalizem racionalidades importadas. E aí, nada do que é humano nos pode ser alheio. E aí, não há consultor internacional ou "legal adviser" que possa dizer Alkatiri, Horta e Xanana sem ser em ritmo timorense, ou Alegre, Sócras, Soares, Manela ou Cavaco, sem ser em ritmo de lusitana paixão. O universal só se atinge pela diferença. E o tempo dos caixeiros viajantes das "public relations" teve os seus últimos episódios com tipos como o Mário Soares.
Timor, como Portugal, tem o belo problema de não ser um Estado multinacional. E, neste mundo da ONU, desses espécies de Estado, há bem poucos. Porque das três a cinco mil nações que podiam ser Estados, a história apenas permitiu a concretização de cerca de meia centena de entidades com este perfil, de nações que querem ser Estados e não de Estados que, pelos aparelhismos, constróem nações, incluindo as imaginadas e as de relatórios de PNUD.
Nações-Estados, em vez de Estados-Nações são a maioria dos ditos PALOPs. Infleizmente, trata-se de matéria que, contudo, não costuma ser tratada nas cimeiras da dita organização, mais preocupadas que estão com outras coisas e loisas de somenos e habituados a traduções em calão de nacionalismologia de importação anglo-americana, tipo LSE, de recente teorização smithiana sobre a matéria, pouco dada a loucuras teóricas, mas certeiras de um Hernâni Cidade.
E Timor tem, como Portugal, um problema estratégico. Não o de estar entalado entre um dos Estados mais populosos do mundo e outro dos que tem das maiores extensões territoriais do universo, mas antes o clássico desafio de saber transformar as vulnerabilidades em potencialidades e de evitar que as potencialidades passem a vulnerabilidades. Porque grandes potencialidades como era a portuguesa do triângulo estratégico levavam a que fossemos imediatamente ocupados por outros, enquanto a vulnerabilidade do David os cem guerrilheiros timorenes, enfrentando o Golias de um dos maiores exércitos do mundo, levou a que a pedrada de Santa Cruz e do trabalho político urbano acertassem em cheio no olho do gigante que tinha os pés de barro da crise das bolsas asiáticas.
Hoje é o contrário. A principal potencialidade deste Estado-Nação, que é Nação ainda sem construir um Estado feito à imagem e semelhança dos timorenses, chama-se petróleo. Coisa que gera apetites. Coisa que sabe navegar na política que é aquela senhora que tem uma face visível e uma face invisível. Coisa que não se compadece com teorias da conspiração e historietas de espiões e especialistas em informação e segurança. Coisa que merce mais uma espécie de patriotismo científico. E melhor política. Não digo mais porque só sei que nada sei. Aqui só sei que há milhares, centenas de milhares de pessoas que morreram pela pátria, por esse invisível laço que nada tem a ver com facturas de bibis e de búfalos. Morreram pela pátria e podem escrever democracia segundo o discurso fundador da dita. Feito pelo estratego Péricles em Atenas, há vinte e cinco séculos.
Apenas comunico que ontem ao fim da tarde, indo a casa de uma família amiga, mais dada às ares do que ao negócio, mais dada aos afectos do que à má língua, mas que há mais de uma década por cá se enraizou, dei por mim que o quintal era comum com a casa de habitação de um ilustre membro do presente governo de Timor. Um célebre secretário de Estado, aliás, dado a sonhos e a realizações. A modesta vivenda geminada do tal governante tinha a porta aberta e a televisão ligada e estava cheia de miudagem e a graúdagem que fazia o jantar, num corropio de quem também via o telejornal. Uma confusão criativa, feita modéstia, feita identidade, feita alegria no rosto e simpatia na comunicação. Seria interessante que os habituais polícias da corrupção aqui viessem medir este índice objectivo de vida modesta, de vida igual a todos os homens comuns desta terra.
Com mais secretários de Estado como este, que, desde sempre, gosta de viver como pensa e não pensa como, depois disso, vai viver, Timor poderá ser um exemplo para o mundo. Também por cá há homens que, neste tempo de homens lúcidos, gostam de ter a lucidez de ser ingénuos. E tipos como este, habituados ao terreno e à confiança público, podem dar consultas de realidade timorense sem a cobrança dos honorários dos causídicos da petrolífera relação de poder. Peço também desculpa por ter dado uma informação errada: afinal, no Timor Contacto, da RTPI, uma empresa timorense de video, a Valsa, passou longa reportagem sobre a feira de artesanato das mulheres timorenses, que aqui descrevi, num dos primeiros postais sobre esta terra.
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