a Sobre o tempo que passa: Depoimento inteiro ao semanário O Diabo sobre aquilo sobre que todos murmuram em ódio ou cobardia, mas raros assumem em palavras e obras, publicamente

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

13.1.09

Depoimento inteiro ao semanário O Diabo sobre aquilo sobre que todos murmuram em ódio ou cobardia, mas raros assumem em palavras e obras, publicamente


Como olha para a forma como a Maçonaria, em Portugal, exerce a sua influência nos meios políticos?

Em Portugal, a maçonaria teve profunda influência na construção do regime demoliberal da monarquia constitucional e da I República e ainda foi uma alavanca fundamental das parcelas das forças armadas não salazaristas do 28 de Maio. A partir de 1935 foi legalmente extinta e efectivamente perseguida, retomando a sua actividade não clandestina depois de 1974, a partir de cerca de uma centena de irmãos que semearam a continuidade da tradição da ordem. A regeneração da tradição demoliberal, a que a Maçonaria está profundamente ligada não permitiu que a instituição clássica representada no Grande Oriente Lusitano e as novas obediências instituídas, sobretudo na década de noventa do século XX, pudessem ter influência moral equivalente ao que sempre sucedeu em regimes como os do Brasil, dos Estados Unidos da América, da França ou do Reino Unido, cujas democracias são efectivas co-criações maçónicas. Contudo, o processo de adaptação ao pós-autoritarismo das maçonarias portuguesas foi mais expansivo do que noutros países da Europa como na Alemanha e em Espanha.

Essa influência é, na sua opinião, clara ou, por seu turno, é muito pouco transparente?

O processo só pode ser visto como não transparente por quem não conhece o fenómeno democrático e as tradições de luta contra o fanatismo, a ignorância e a intolerância. Infelizmente, em Portugal, ainda permanece um subsolo de incompreensão face a uma ordem a que pertenceram pessoas como Kant, D. Pedro IV, Churchill ou Jean Monnet, de liberais a socialistas, de conservadores a destacadas figuras eclesiásticas. Bastava aliás notar que a última intervenção pública de Fernando Pessoa, nas vésperas da morte foi a defesa da não extinção da maçonaria contra os ditames da primeira lei do Estado Novo, desencadeada por um conhecido defensor da restauração da pena de morte que, em 1867, fora abolida depois de uma campanha e do empenhamento de maçons portugueses que, no mesmo dia, também lançavam o primeiro Código Civil, o do maçon António Luís de Seabra. Dizer que o Partido Conservador britânico sempre foi enraizadamente maçónico ou que a Resistência francesa nasceu desse impulso espiritual apenas causa espanto para mentalidades tão intolerantes quanto certa faceta ultra-positivista e neojacobina da história maçónica, a que queria “enforcar o último papa nas tripas do último padre”. Porque os maçons, em termos de opção política, correm todo o espaço dos arcos democráticos que defendem as sociedades livres e pluralistas.

Temos a ideia de que as nomeações governamentais por vezes têm de respeitar uma espécie de quota maçónica. Esta ideia corresponde à realidade?

Quotas, ao que parece, só para as mulheres e, noutros países multiculturais, para algumas minorias étnicas. Julgo que, por cá, se fôssemos para as quotas, em regime de proporcionalidade, qualquer organizador de governos não poderia desempenhar a sua missão. Quanto ao caso concreto, como não há lei nenhuma que imponha a declaração de crenças íntimas e a liberdade de associação de cada um, porque seria flagrantemente inconstitucional. Logo, resta a teoria da conspiração, a que se têm rendido algumas forças neocatolaicas, no habitual confronto do pluralismo eclesiástico...

É conhecida a posição da Igreja em relação à Maçonaria, sobretudo à sua atitude de secretismo. A Igreja sempre olhou de forma desconfiada para as relações crescentes entre o poder político e a Maçonaria e coloca em causa o poder democrático que é transferido do povo para mão alheia. Como se pode interpretar estas posições?

Julgo que a maçonaria é tão secreta quanto os conclaves e as conferências episcopais das várias igrejas. No caso concreto da Igreja Católica, talvez seja importante recordar que desde 1891, os católicos abandonaram a classificação de heresia para os demoliberais e a doutrina social católica obrigou a uma mudança profunda. Seria também correcto que alguns católicos, que parecem querer fundar um eventual partido antimaçónico, como já aconteceu há centenas de anos nos Estados Unidos, reparassem na pluralidade dos universos maçónicos, dado que eles não se confundem com o ateísmo, o agnosticismo ou o panteísmo.

5. Qual a importância da Maçonaria, no caso, em Portugal? Ou seja, que mais-valias pode ela dar à sociedade e ao desenvolvimento do País?

Julgo que Portugal tem urgência no renascimento de importantes forças morais e espirituais que marcaram a tradição portuguesa, até na tradição do altruísmo e da filantropia. A história da maçonaria e a história dos católicos portugueses impõem que eles regressem aos momentos altos de refundação nacional, como aconteceu com o lançamento do nosso mais recente regime democrático, onde, em todos os principais partidos, conviveram altos membros da Igreja Católica e da Maçonaria, todos impedindo o regresso a um confronto entre a política e a religião, ao contrário do que sucedeu em certas fases da I República e com o salazarismo, onde a persiganga mútua foi má para o povo. Nestes tempos de crise, a restauração de uma política de valores impõe que não se recrie um ambiente propício à incompreensão entre o humanismo cristão e o humanismo laico, cuja aliança é, aliás, a matriz do recente projecto europeu, nascido do combate aos totalitarismos. Basta que haja compreensão pelas diferenças e honesta intenção de homens de boa vontade, mesmo que ambas as famílias de valores reconheçam erros passados, de confrontos que, quase sempre, levaram à vitória de inimigos comuns.