a Sobre o tempo que passa: O reduto da resistência. De Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

9.3.10

O reduto da resistência. De Teresa Vieira


O reduto da resistência

O progresso não reside no subir degraus reduzindo os factos automaticamente ao tamanho de cada um deles e assentando em escadas anteriores a culpa das insatisfações das épocas.

Se existem engarrafamentos nas linhas rectas, o motivo que as entope, encontra-se na sinuosidade das mesmas e no não aperfeiçoamento humano, assente na guerra de onde surgem as ruínas de povos iguais.

Um facto bem conhecido é o do esgotamento da energia da confiança: confiança no contrato, no futuro, na palavra, no poema, na luz da liberdade contra a fatalidade.

Ícaro no seu voo perto do Sol despenhou-se no mar, era um aviso. Um aviso que mais não fosse servido na bandeja deslumbrada dos desejos soltos. Ainda assim resulta hoje aceitável que se comprem e vendam homens a preço de mercado labiríntico já que a tal fatalidade a tanto obriga.

Creio que se consciencializou que a expectativa de cada um em si mesmo, pouco vale, se não assente numa seguradora, à qual se paga um prémio regular pela morte em troca de uma vida de valor mercantil.

Surge assim um progresso assente na remuneração de um investimento seja ele qual for, desde que se amplie um poder.

Raiam assim como pulgas de efeito multiplicador os generosos contratos de adesão assentes na propiciadora parte que os comanda e na improvável participação no decidir da contraparte.

Desconhece-se se acaso o princípio da igualdade, em que só uns decidem e só outros cumprem, é em si mesmo uma das bases da democracia rendida à expressão das pessoas-numerário.

Todavia, é de atentar o quanto o ricochete das posturas escravizadoras destrói o sonho que deixa de ter lugar reconhecido, pois que a ordem é quantitativa.

O progresso passa a ser o futuro de uma propriedade de números expressos em unidades de moeda e esta indexada a um poder.

Até o infinito nos surge numérico.

O trabalho, a inteligência, a afectividade, deixam de reconduzir os seres à realização de qualquer virtualidade humana, e no extremo curto, são trocados por unidades de moeda.

Não sei se aqui chegados, nos surge o homem como a tal carcaça do tempo, ou, se aqui chegados, o homem se recusa a ser objecto do homem, quer individual quer colectivamente e parte para um outro início e um outro fim.

Que posso propor?

Proponho a esperança numa viragem.

Proponho que se reflicta que só o espírito tem tomado várias direcções ao longo da história.

Só o espírito na sua força imprevisível inventa novos modos de vida.

Proponho um progresso em que a festa nos lembre o que é necessário arrasar para existir, tal como nos dizia Jean-Duvignaud.

Proponho que sejamos desertores da infelicidade que também criámos para que a lei seja de uma rara tolerância.

E reconheçamos o quanto nos falta um discurso constituinte articulado em coerência com a nossa postura e seja ela, enfim, o exemplo fundador, o reduto da resistência: que a lei que ninguém promulga seja a que se nos aplique.

Teresa Ribeiro B. Vieira

7.03.10

Sec.XXI