a Sobre o tempo que passa: Da crise a uma nova concepção de vida. De Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.5.10

Da crise a uma nova concepção de vida. De Teresa Vieira



A história tem-nos ensinado que os movimentos inovadores, nascem das crises e sobretudo quando estas atingem o máximo.

Não descodifico o máximo já que é uma realidade aferida de modo diferente face às circunstâncias de cada um. Ainda assim, já li o quanto as crises nos ensinam a dizer esperança.

Talvez seja necessária uma determinada crise para que o homem se consciencialize da impossibilidade de continuar a vida em que estava.

Em todas as situações de angústia a vida na cidade torna-se mais imprópria para ser vivida do que a vida no campo. Na cidade ou se inova ou a falta de ar asfixia.

No campo, talvez porque nunca se perdeu o contacto com a grande Mãe-Natureza, os imensos ensinamentos dela, deram, a quem os entendeu, a coerência e o grau de paz que impedem mais facilmente o desespero, inovando-se a cada dia enquanto se aguarda o tempo do semear e do colher.

Curiosamente, as profundas crises também expõem o medo terrível do nada. Exprimem o próprio medo do silêncio, o medo de estar sozinho, o que é diferente do medo da solidão.

Tudo isto é levado a um forte extremo já que o homem da cidade, particularmente este, nunca está consigo, nem para si próprio tem disponibilidade. Então como pode ter disponibilidade para produzir amor? ou para ver uma estrela no céu? Será difícil, digo, que a razão que rodeia os atordoamentos do homem da cidade, possam atentar a estas realidades.

Depois há o oportunismo do ou vens jogar à batota comigo ou…

Parece que o homem que se queixa abertamente de tudo e a todos, tem mais impacto com a pena que inspira do que aqueles que pela dignidade própria e alheia, cuidam que o silêncio seja correctamente interpretado.

É horrível, mas muitos são os exemplos de quem, de tão nada ser, precisa de denegrir os outros para obter graus de satisfação doentia e, de preferência, monetariamente rechonchudos.

Sempre disse que de nada vale ser oficial por grau académico se inimigo do fundo das coisas.

E aí estamos noutra crise gerada também pelo nanismo intelectual que acima referimos: ou seja, pela via da desonestidade que vai tendo êxito, se o próprio que a pratica se salvar, enterrando vivo, não importa quem.

Há que contar com a mediocridade de quem aprecia estas posturas e, repita-se, o quanto Marx dizia que realmente o grande problema do homem era a diferença entre a essência e a existência.

O homem pode até ter uma certa essência, mas ai que raramente consegue tornar a existência igual à essência.

Acreditamos que o sistema de carência nutricional a nível da razão da ética e da moral tem sido o que leva ao fenómeno da bulimia tão presente nos dias que correm.

A mesquinhez do dizer mal canalizado na água corrente, satisfaz a sede dos ratos que pululam na dissimulação do mal que fazem, sob a capa de celestiais seres que afinal, muitas vezes, de jeito impune entopem o futuro e queixam-se das crises como se não se descobrisse nunca o seu grau de culpabilidade imensa.

Todos conhecemos alguém que, pleno de mérito, lhe faltou a dada altura da vida o essencial à sobrevivência e, todos sabemos quantos não o auxiliaram no mais premente dos segundos dos dias, e quando estes não davam sequer pelo nome de crise, mas antes pelo nome de mundo de onde o verbo dever se tinha ausentado.

O verbo dever é, para muitos, o pior verbo que há, até porque implica uma regra. Note-se.

E como quase todos conhecemos já alguém na situação acima descrita, já quase todos fomos capazes de abandonar outrem com uma inclemência que não sustenta muitas das palavras que agora querem pronunciar acerca da crise actual.

De facto, não receio que quem só coma pão, possa ter de comer menos pão. Antes todos nos devemos envergonhar se permitimos que até hoje alguém só comesse pão, ou nem isso.

Este momento deve ser vivido também como um momento de profunda renovação interior. Muitos foram os erros que se cometeram e que se permitiram ou mimetizaram para que chegássemos a este tipo de crise.

A festa da abundância de valores festeja-se na comunhão da solidariedade.

As crises também só se ultrapassam em comunicação dos homens entre si. Recordemos a frase de Saint-Éxupery que diz: «Nós que cultivamos a amizade entre os homens, os pequenos encontros transformam-se, por vezes, em festas maravilhosas.»

As pessoas do mundo de Éxupery não são gente de roleta, são gente do tipo humano.

São gente que não sente gulas a não ser a que as leva ao esforço por se melhorarem. Aquelas, que levam também na crise em que estamos inseridos, a que todos possam vir um dia a compreender o que revelavam as palavras de Fernando Pessoa: «Quando olho para o meu prato vejo a natureza toda como um jardim, como se fosse uma pintura da natureza dentro do prato.»

Talvez depois, talvez quem sabe? com a desintoxicação do espírito e o alívio de muitos tipos de fome, a emanação do homem possa dar uma outra dimensão à vida.

Jean Delumeau afirmou que « a história antes de mais individualiza o “iceberg”ao descobrir a realidade dos extractos sociais que não contavam, mas que eram fundamentais aos equilíbrios.» enquanto um dos meus heróis da Literatura – Ítalo Calvino – apontava a necessidade da chamada participação ideológica de maturidade.

Em rigor, a história tem-nos ensinado que os movimentos inovadores, nascem das crises e acredito que só com novos valores teremos uma nova economia.

E ainda acrescento que só se deveria construir o mundo a partir dos traços do novo.

M. Teresa B. Vieira

16.05.10