a Sobre o tempo que passa: Nomeio o Mundo. De Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

13.5.10

Nomeio o Mundo. De Teresa Vieira


Hoje, Bento XVI referiu no C.C.B. a importância do diálogo sem ambiguidade para ultrapassarmos a crise da verdade.

Julgo que uma das questões fundamentais não é a de propormos “apenas” uma revelação do Homem ao Homem, mas anterior a esta, deverá estar a ideia enquanto fundo que sustenta a forma e não o inverso.

Se assim não acontecer estaremos perante o tal povo que, ao deixar de saber qual é a sua verdade, se perde para sempre no labirinto da história. Neste caso, este Papa que não descura o pensamento, exprime bem o perigo de não interpretarmos que a hora é a que exige as nossas forças.

No ambiente de catolicismo praticante em que fui criada, sempre me deparei com um vazio de actuação da Igreja no âmbito cultural. Daí que a experiência da Capela do Rato me tenha marcado, acima de tudo, por me propor sob o signo da progressividade, uma prática de estar que implicou uma outra noção de tempo, de trabalho, de revelação, de tentativas, de luz, muito para além da filosofia do sétimo ano da altura.

Mas esta postura da Igreja desses tempos em Portugal e que agora refiro, era residual, diga-se.

Aliás, o estudo da filosofia também começava e se encerrava num fogo festejado como tendo terminado o estudo da mesma, exactamente, quando todos estávamos mais maduros e preparados para o início da sua abordagem.

Desta forma, o nosso auto-encorajamento à interrogação e ao espanto era, de certa forma, uma disciplina inacessível à compreensão de muitos.

Entendíamos a religião que praticávamos como uma espécie de tribunal de última instância aos nossos actos o que lhe atribuía um poder insuportável face aos parcos argumentos de não-culpa que queríamos invocar.

No sentido que acima refiro, o caminho para a Capela do Rato era o caminho dos caminhos para a descoberta das nossas naturezas emocionais e com dimensões de amor diferentes.

A crise da verdade que hoje foi abordada por Bento XVI era vista por nós, como uma procura real da filosofia, e se a religião fosse o que dela esperávamos inicialmente, e, muito no escondido do nosso sentir, então a paixão das perguntas era a chave que admitia o acesso a uma última arte e porque não à sétima arte a que hoje se referia Manoel de Oliveira.

Notávamos que na Capela do Rato se ouvia os que falavam menos. Ouvia-se até a miudagem como nós que ainda que pouco jesuíta se interessava pelo que era mais vivo e mais admirável na espontaneidade da nossa adolescência.

Era-nos dada a palavra e não apenas o tempo de falar, mas também o meio e o espaço de o fazer.

A pouco e pouco íamos percebendo que aprender a falar era também aprender a não ter medo, nem mesmo do tribunal supremo da religião.

E íamos crescendo entre a não percepção correcta da morte de M. Luther King e o amparo de Jesus em horas de maior receio.

Recordo que o Rui, um dia, perguntou ao padre Jesuíno se era pecado pedir a Jesus ajuda para vencer o medo do corredor da sua casa, à noite, quando se dirigia ao seu quarto.

Respondeu o padre Luís Pedro da Igreja de Sta Isabel dizendo-lhe que Jesus se preocupava com esse tipo de corredores escuros e que um dia até disse a um anjo que não estava de acordo que esses corredores não tivessem sempre uma luz acesa.

Deste modo e não apenas, saíamos para novos mundos e recolhíamos à ideia de Cristo se os passos fossem maiores do que as pernas ou se as terras da distância nos provocassem medos superiores à nossa altura.

Mais tarde, já profetizados como homens e mulheres do futuro, começámos a entender que as saídas não eram necessariamente pelas portas do fundo, mas antes pelas possibilidades da humanidade, e tentávamos manter-nos em ritmo uniforme no ponto mais alto; um tanto desalinhados do «orai e vigiai», mas no brilho de uma outra interpretação da revolução religiosa: a da civilização do amor.

Um dia, quando soube que um dos padres que nos assistia na Capela do Rato “tinha dado em hippie” tal como me foi dito, pensei e repensei o quanto ele devia sofrer naquela pergunta pelo significado, e nessa abertura para outros universos que ainda receava, respondi:

- Pois, nomeio o mundo e o padre Luís.

E num anel de Saturno, adormeci nessa noite a espreitar o Woodstock que ainda não entendia, mas em verdadeira missão por entre a tradição e o presente dessa hora.

M. Teresa B. Vieira

Lisboa, 12 de Maio de 2010