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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.5.10

Mais um discurso sem Santo António nem peixinhos, à beira do poço onde fomos ao fundo


Em memória de José Luís Saldanha Sanches


Pedro Passos Coelho pede desculpa a quem tem de pagar a presente ditadura da incompetência, onde mandam os bonzos que se assumem como representantes das principais multinacionais partidárias, ao serviço do directório da nova hierarquia das potências geofinanceiras e do respectivo ocultismo, gerido pelo eixo franco-alemão.

Portas fala em bombardeamento fiscal e não se recorda de ter fundado aquele PP de Manuel Monteiro, o que foi expulso do PPE por ter discursado sobre a preferência de produtos de origem nacional, como agora proclamou o senhor Presidente da República.

Cavaco continua a gestão dos silêncios, está em espiritualidade e em tolerância de ponto, nesta semana de banhos místicos de multidão, com 65 000 no estádio da águia e 100 000 na Rotunda, entre saudações a Jesus e esquecimento dos cem anos da ousadia de Machado Santos. Manuel Alegre não diz nada. Está entalado entre a coca-cola de Sócrates e os filetes ideológicos de Louçã.

Apenas apetece recordar Carl Schmitt e o seu decisionismo. Soberano é o que decide em estado de excepção. Ou Thomas Hobbes, lançando o Leviathan como "salus populi, suprema lex". O resto é literatura de justificação, plena de metáforas celestiais, mas com nada de institucionalismo.

O governo é Sócrates sozinho numa jantarada em Bruxelas. E o parlamento, mera caixa de ressonância de uma reunião entre Sócrates e Passos, onde vamos ter uma revirada unidade técnica de acompanhamento orçamental que até deveria ser presidida por Medina Carreira. A verdadeira sede de poder já nem são os directórios partidários, mas o mesmo sítio onde foram os dois abusadores da posição dominante da partidocracia, na passada semana, não para receberem ordens, mas para obterem a "inside information" que aqui não chega...

A política é a arte do possível, sujeita à ditadura dos factos, porque, de boas intenções, está o inferno cheio. Logo, a pedra em que deve assentar toda a construção democrática é o respeito pela palavra dada, sobretudo a da promessa eleitoral. Vale-nos que Jesus Cristo não percebia nada de finanças.

A boa política não pode confundir-se com operações de lóbis, vendendo gato por lebre, ou proclamando novas fronteiras, quando apenas oferece pescada descongelada, aquela que antes de o ser já o era, através de uma eficaz operação de colocação de cirúrgicas fugas de informação, à mesma hora, à velha maneira da psico militar em actos de ocupação do vazio de povo...

Não se combatem incêndios florestais com bombeiros-pirómanos, mesmo que se recubram com o verniz de um federalismo sem dor, invocando a salvação da Europa e deste país, quando apenas querem conservar o que está e não o que deve ser, de acordo com a antiquíssima lógica do poder pelo poder. Um desceu nas sondagens para segundo lugar, pela primeira vez, outro parecia merecer os 40%, antes de se abrir o melão... Mas as modas podem passar de moda e Portas já deu o golpe do costume...

Entre o martelo dos tremendistas e a bigorna do não bebas coca-cola, eis a pretensa classe média, a dos remediadinhos, do sonhar é fácil, que, entre canhotos e endireitas, vai confirmando que chapéus há muitos, seu palerma! Logo, porque já não há fiado, fica o fatalismo do come e cala... Prefiro o adequado gesto do Zé Povinho, em nome da não resignação e do direito à indignação que me ensinaram os locatários de Belém, onde um terceiro também decretou que há vida para além do défice.

Antigamente, ainda havia a tradicional lógica do procurar o d'além para salvar o d'aquém, e assim, durante séculos, nos pusemos a mexer desta terra ocupada pela fidalguia sem competência e pela fradalhada sem autenticidade, com ambas as classes marcadas pelo dito do sapateiro de Braga, para quem não há moralidade nem comem todos. A nossa última ilusão imperial foi a integração europeia, entre as dores da passagem a salto, para lá dos Pirinéus, e as cerimónias do porreiro pá, recordando o betão dos fundos estruturais!

A santa terrinha já não é essse misto de aldeia da roupa branca com o pátio das cantigas, quando os vascos eram santanas. O jogo da economia da roleta, a sociedade das "slot machines", do euromilhões e das fundações do Stanley Ho. Tudo aquilo que essa guerra deu, essa guerra parece levar, sem trova do vento que passa, porque tudo o vento levou...

Entre os discursos do ministro da informação de Saddam Hussein e as venerandas palavras de Américo Tomás, dizem que o Titanic vai vencer os icebergs. Prefiro reconhecer que já ouvi um desses discursos sobre as vacas magras, antes de um regime cair por dentro, de apodrecido, quando as gaivotas esvoaçavam e os cravos pareciam viçosos...

Os tempos que passam, com tanto reumático contra o fantasma do reumático, cheiram demais aos tempos da outra senhora. Vivemos a maior crise dos últimos cem anos, mas, pior do que isso, foram os últimos quinze dias e nós, os campeões europeus do crescimento, apenas vamos ter mais impostos para ajudar a salvar a Europa e a moeda única! O pretenso federalismo sem dor, com obras ferroviárias e elefantes brancos, para outros especuladores, apenas reflecte o regresso às velhas ditaduras das finanças, não já domésticas, mas multinacionais, plenas de bruxaria e de navegação à vista, com a tal ciência pretensamente certa que invoca a certeza do poder absoluto e que não se importa com golpes de Estado constitucionais.

Por enquanto, disfarçam a pílula com encenações de bloco central, a que deviam dar o nome de união sagrada, quando Afonso Costa se entendeu com António José de Almeida, mas onde não entrou o Brito Camacho, chefe dos que se chamavam unionistas. Preferiu guardar o seu sidónio para o golpe dezembrista que foi pior emenda do que o soneto.