Homens sem fé, gente sem espinha
Nesta sexta-feira que não é treze, pouco depois das três da tarde, o sereno Conselho de Estado, animadamente, mas com muita elevação, deu, por maioria, parecer favorável à dissolução. Bem gostaria de saber se algum dos conselheiros, de partidária estirpe, se libertou da disciplina partidária e se, nesse altíssimo lugar do Estado, houve, ou não, a coragem da confiança pública.
Porque, cá em baixo, há um povo que vai esperando a voz suprema do Senhor Estado, desse que está lá em cima, assente nos tradicionais privilégios absolutistas de quem manda. Porque, lá, nas alturas, eis que os donos do poder se refugiam nos escudos invisíveis do segredo de Estado e da razão de Estado. Porque, lá, nos etéreos salões e corredores blindados, onde se finge acumular o poder, todos fingem que não é verdade o que, na verdade, sentimos.
Porque, cá em baixo, na planura dos que obedecem, esse "quid" a quem lisonjeiam como "povo soberano", apenas resta a dimensão resignada do auditório da cidadania passiva. Porque apenas podemos interpretar os construídos parágrafos dos discursos de Estado em hora de telejornal, antes da quinta das celebridades, esse máximo videopoder no seu máximo esplendor, essa teledemocracia cada vez mais interlúdio para os jogos da barganha, à porta fechada.
Bem apetecia que o zé povinho não fosse apenas zé pagante, zé votante, zé referendante, zé bate-palmas a zés tão zés quantos os zés que somos. Sim, a crise vai ser resolvida pelo folclore campanheiro das caravanas que visitarão as feiras das farturas e os mercados da peixeirada, com ministros a utilizarem forças armadas para tempos de má antena e a instrumentalizarem a dor do desemprego, a fim de garantirem coligações negociais, pela contabilização de deputados, ministros, directores-gerais, contratos, gestores, cunhas e favores. Porque isso de ideias é programa encenado, com manitus distribuidores do verbo e da verba, os muitos psicopatas oraculares que fazem da ciência cunha, golpada corporativa, fidelidade feudal e pequena personalização do poder.
Por mais que os dissolventes dissolvam os dissolvidos, o mesmo ácido nos continuará a corroer, sem que se limpe este ferro-velho de compadres e comadres, com muitos tacticistas sem estratégia, com muitas guerrazinhas de homenzinhos, de mulherzinhas e de terceiros sexos, onde os validos e as pompadour já nos enchem de alergia. Gente sem espinha, homens sem fé, dias de raiva e de silêncios, e a melancolia de uma pátria que desespera, sem força para que as mãos de revolta desordenem a falsa ordem daqueles instalados que perderam o sentido dos gestos.
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