Sarmentos, caudilhos, principados, sampaios e ditaduras
Dizem-me que a SIC-Notícias terá usado um artigo da minha autoria, integrado no desactivado CEPP, porque burocratas exímios decidiram matá-lo, para comentar a afirmação sobre o caudilhismo sampaísta, desencadeada por Morais Sarmento. Mas nesse artigo apenas saliento que a expressão começa por qualificar os chefes dos bandos cristãos, durante a Reconquista. Passa, depois, a qualificar os ditadores militares da América espanhola (caudillo) na sequência das guerras de independência sde 1810-1826. Estes chefes estão aliados aos haciendados. Destacam-se Diáz no México, entre 1876 e 1910 e Gómez na Venezuela, de 1908 a 1933. Franco qualificou-se como Caudillo de España por Gracia de Dios, quando teve de gerir uma monarquia sem rei.
Podia ir mais longe e comparar a expressão com aquela perspectiva do nacional-socialismo que tinha como linha de força o lançamento de um novo tipo de comando político e de governação, o Führing, que emanaria directa e organicamente da própria comunidade. Daí o Führer ser entendido, não como órgão do Estado, mas como representante directo da nação, não como mandatário mas como o próprio poder incarnado. Deferiria tanto da tradicional regierung e não se confundiria com a ditadura clássica.
O Estado-Aparelho, entendido como um conjunto de meios técnicos, pessoais e materiais ao serviço de um interesse geral que ele já não determina, como assinala Georges Burdeau, passou a estar nas mãos do Führer para, como assinala Höhn, servir a Volksgemeinschaft, por um lado, para preencher certas funções nacionais (ordem, segurança interior, defesa nacional) e, por outro, como instrumento para a educação do povo no espírito da Volksgemeinschaft. Nestes termos, o Estado já não tem a qualidade de uma pessoa moral, à qual o particular deveria obediência... A base do novo pensamento jurídico é a ideia de comunidade do povo. O Estado não é senão um instrumento para realizar os fins da mesma. Poderia também dizer que o modelo italiano gerou um duce e, na Roménia um conducatore.
Julgo que o Senhor Ministro Sarmento poderia referir antes a questão do principado romano, que durou de 27 A. C.. ao ano de 284 d.C., o qual surgiu quando os vários órgãos da República Romana instituíram Octávio como princeps civitatis, como o principal dos cidadãos. Ele, que já era cônsul, recebeu, depois, a tribunicia potestas a título vitalício - com os poderes correspondentes ao tribuno da plebe, nomeadamente o direito de veto sobre as deliberações dos outros magistrados - e o imperium - o poder de comandar o exército e de fiscalizar pessoalmente a administração de todas as províncias. Não tarda que vá acrescentando uma série de outros títulos, como o de augustus, de pater patriae e até de imperator.
A partir de então, o princeps constitui um novo tipo de magistratura que já não se enquadra na categoria das magistraturas republicanas, marcadas pela temporalidade, pluralidade e colegialidade. Pouco a pouco, se concentram nele o imperium dos magistrados republicanos, a auctoritas do Senado e a maiestas do populus. Aliás, as próprias decisões do Senado, os senatus consulta, apesar de formalmente continuarem, transformam-se na repetição dos discursos do príncipe (orationes principis). Da mesma forma, os comitia do povo, se não foram abolidos, morrem por inactividade. Ao mesmo tempo, cria-se um corpo burocrático, directamente dependente do Príncipe, constituído pelos legati, pelos praefecti e pelos procuratores, bem como novos instrumentos orgânicos, como o Concilium Principis, depois transformado em Consistorium Principis, enquanto aquilo que era o tesouro da cidade (o aerarium) cede perante o fiscus (a fortuna pessoal do príncipe).
Só com Diocleciano, em 284 d.C., é que principado cede o lugar ao dominado, dado que o imperator passa a intitular-se dominus e deus, exigindo adoratio e considerando que o seu poder já não deriva da velha lex curiata de imperio, mas antes de uma investidura divina. Ora, os posteriores fenómenos de personalização do poder têm algumas analogias com o modelo de Octávio.
Outra perspectiva mais próxima é a do bonapartismo, entendido como movimento político histórico, como sistema de governo e como conjunto de ideias políticas. Como movimento político histórico, foi aquele que apoiou a eleição de Luís Napoleão em 1848. Como sistema de governo, essa mesma personalidade da história francesa instituiu o centralismo como modelo de governo, com os representantes das províncias a serem nomeados pelo poder central, e adoptou o populismo, num misto de autoritarismo e soberania do povo. De qualquer maneira, se admitiu formas de representação parlamentar, sempre as fez depender do poder policial e militar. Assumiu, sobretudo, o diálogo directo entre as massas populares e o líder, considerado um representante directo de uma soberania popular una e indivisível, utilizando frequentemente o sistema do plebiscito.
O movimento está próximo do futuro gaullismo, sendo paralelo aos conceitos de cesarismo e usurpação. Há quem o alargue a outras experiências históricas, desde a de Napoleão I ao gaullismo, passando pelo próprio modelo da revolução a partir de cima gerada por Bismarck, abrangendo outras formas de ditaduras modernizantes.
O teórico fascista Giulio Evola refere, aliás, o bonapartismo como aquele sistema de poder, diverso do elitismo e herdeiro dos condottieri da Renascença, sempre que o chefe político considera que a respectiva autoridade deriva de um outro e não de um princípio superior, como o da autoridade ou da soberania, implicando distância face ao demos. Salienta que é o sentimento da distância que provoca nos inferiores a veneração, o respeito natural, uma disposição instintiva para a obediência e lealdade para com o chefe. Contrariamente, o chefe bonapartista ignora o princípio segundo o qual quanto maior for a base mais alto se deve manter o cume. Marcado pelo complexo da superioridade, precisa de manifestações, ainda que ilusórias, de que o povo o segue e aprova, onde o superior precisa do inferior para experimentar o sentimento do seu próprio valor e não o contrário, como seria normal.
Todos estes modelos diferem da ditadura, de dictare, dar ordens. Segundo Maurice Duverger, o regime político autoritário e mantido pela violência, de carácter excepcional e ilegítimo. Na Roma republicana, o ditador era, aliás, um magistrado extraordinário investido pelo Senado durante um período de suspensão do direito (iuristitium), com prazo limitado, durante o qual se suspendiam as restantes magistraturas. A ditadura, além de provisória, era juridicamente regulada. Visava a condução de uma guerra ou a solução de uma grave crise doméstica. Desta origem romana, o regime ficou sempre como um modelo provisório de formal suspensão da política.
Mas algumas são quase definitivamente provisórias e provisoriamente definitivas, um jogo de palavras usado por certos oposicionistas portugueses ao regime salazarista, por causa de duas marcas de tabaco popular então existentes, os Definitivos e os Provisórios.
Julgo que Morais Sarmento não tem, nesta lista, modelos que enquadrem o sampaísmo.
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