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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.12.04

A procura do pós-santanal...



Acabou o santanal. O presidente falou forte e feio e, depois de uma "avaliação de conjunto", "despejou" uma maioria e o consequente governo que não foi "estável, consistente e credível", marcado por "incidentes, declarações, descoordenações e contradições". Referiu a "instabilidade substancial", a crise, a falta de "solidez" e de "prestígio", a não existência de "transparência, imparcialidade e equidade". Disse também ter notado na "consciência colectiva" uma reacção de não apoio ao governo e decidiu-se pela "devolução da palavra ao eleitorado", para se iniciar um "novo ciclo político".

O PSD logo respondeu, clamando: "havia estabilidade política". O PP, contrariando a promessa de Portas, mandou Telmo proclamar que sempre existiu um "apoio parlamentar impecável", "um processo legítimo" e que o respectivo partido sempre foi um "factor de governabilidade" e "um exemplo de governação". O PS acrescentou que "isto não podia continuar assim", pelo que "nas próximas eleições legislativas, as escolhas são claras: quem quiser entregar o Governo a Pedro Santana Lopes e Paulo Portas, lado a lado, que vote na coligação PSD/CDS-PP. Quem quiser mudar para melhor, que vote no PS". Mas o prémio do disparate do dia cabe a Manuel Dias Loureiro: «eu disse uma vez ao Santana Lopes: 'olha Pedro, soltaram-se para aí uns demónios e eu acho que não vão parar, e se queres o meu conselho, é melhor demitires-te'. E ele na altura concordou». Porque ou a política se transformou numa garotada de colégio ou Pedro Santana Lopes está prestes a regressar ao cargo de presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

Os habituais intermediários comunicativos fizeram as habituais análises redondas, à excepção de Carlos Magno que logo observou que Sampaio "deu corda a Santana Lopes para ele próprio se enforcar" e a comunicação social "fez-lhe a vida negra", apesar dos esforços de Luís Delgado.

Também nós o denunciámos. Basta recordar palavras que escrevemos e publicámos no preciso momento da génese destes tristes quatro meses:

"Apesar de nada me mover pessoalmente contra o edil lisboeta, habitual semeador de palmeiras na Figueira e de buracos na Rotunda, não posso deixar de reconhecer que ele não passa de uma ilusão, dado tratar-se de mera consequência do actual paralelograma de forças vivas que nos enreda. Apesar de lhe reconhecer inteligência, intuição, faro político e inegáveis capacidades comunicativas, bem como franca originalidade, considero que ele pode sul-americanizar a nossa democracia, misturando o estilo de Carlos Menem com algo de Color de Melo".

"Se o presidente Sampaio, virando rainha de Inglaterra, permitir que esse modelo de direita sem princípios, sem futuro e sem moral assuma a liderança do país, desconfio que será facilmente domada uma direita sociológica ávida de forças motrizes que, em nome da acção, desprezará o pensamento e os valores".

"Pedro Santana Lopes, produto de um PPD profundo e histórico, revela a originalidade de quem assenta na rede da aristocracia partidária local, num aparelhismo que vem de baixo para cima e não das habituais nomenclaturas aparelhísticas dos barões centrais. Sendo mais homem de terreno que de secretaria, assente no vitalismo predador dos jotas, é natural que tenha sido imediatamente estimulado por Alberto João Jardim, Luís Filipe Menezes e Pinto da Costa".

"Mais grave foi que tenham vindo a público os apoios de formas inorgânicas da recente união dos interesses económicos, desse patronato da economia mística, sempre ávido de feitores que sejam capazes de controlarem a sede de justiça dos povos, dando-lhes circo e ilusão de pão e luxo, de acordo com o ritmo desta sociedade de casino".

"Com efeito, neste ambiente de utilitarismo que Cavaco Silva semeou, proclamando que tem razão quem vence, torna-se grave que as encenações do Estado-Espectáculo acabem por prevalecer e que o Portugal político possa cair na tentação de Vale e Azevedo, face a este crescendo do indiferentismo e da apatia, aliado ao assustador desenvolvimento da corrupção e do clientelismo".

"Apenas espero que um presidente eleito por sufrágio directo e universal não queira transformar-se num venerando manequim não fardado, como Carmona. Não me apetece ver grego, admitindo cavalos de Tróia na cidade. Prefiro resistir, estar de acordo comigo mesmo, ainda que esteja em desacordo com a maioria. Não é por só haver doentes no mundo que a saúde deixa de ser um bem..."

"O nosso novo primeiro-ministro é o primeiro em tal posto que, antes de o ser, nunca foi ministro, mas autarca. E Portugal precisava de um governo assim, com muitos homens e advogados de negócios, gestores da banca e aparelhistas partidocratas, agilíssimos nos discursos, levíssimos em ideias, lestos em cheques e exemplaríssimos nos comportamentos morais. Porque assim se demonstra como é possível a governança sem governo, dado o amadurecimento de uma sociedade civil onde funciona a pilotagem automática do neo-corporativismo e do neo-feudalismo desbragados, onde a própria memória anti-plutocrática de certa direita, a dos provincianos, rurais, periféricos e socialmente ressentidos, fica definitivamente autorizada a votar na extrema-esquerda que não joga golfe".

"Depois de gémitos imensos, a montanha parlamentar deu luz o ratinho do novo programa governamental. Esse conjunto de frases metidas a martelo num texto "copy and paste", que bem podia ser adquirido num desses supermercados das pós-graduações para gente fina".

"Estes governantes apenas cantarolam ideias e ideologias. Um dia são liberais, adeptos de agressivo individualismo. Outro, sociais-democratas ou democratas-cristãos, cheios de preocupações sociais, fazendo discursos sobre os velhinhos, os pobrezinhos, os reformadinhos, os aposentadões, os jubilidassímos e outros que tais. Um dia estão à direita, de faca na liga, à maneira de Alberto João. Outro, viram à esquerda, no choradinho "jet set", como os ex-líderes de RGA feitos figurões de Estado".

"Produzidos pela nossa tradução em calão dos Berlusconi, sabem que o povão está embriagado de fado, futebol e fátima e que, em caso de crise, basta mobilizar um novo João Braga, um novo Eusébio ou um novo Rasputine para que, no baralhar e dar de novo, tudo continue como dantes".

"O subscritor destas linhas, defensor assumido do capitalismo liberal, que, aliás, nunca recebeu um só tostão do complexo banco-burocrático que nos domina, a título de consultadoria, subsídio ou patrocínio, pensa ter alguma legitimidade para declarar que são os efectivos liberais que mais odeiam o liberalismo sem ética, a concorrência sem regras ou a corrupção já sem vergonha".

"Os melhores aliados do Bloco de Esquerda e de todos quantos estão a fazer renascer o socialismo marxista são, na verdade, os que assumem o presente devorismo desta direita dos interesses, deste modelo de economia privada sem economia de mercado".

"A corrupção é bem mais grave quando os aliados dos corruptos são os que, actualmente, fazem o discurso contra a corrupção. Os grupos de pressão tornam-se bem mais agressivos quando os analistas das pressões e dos interesses são os avençados dos ditos grupos. Os abusos de posição dominante agravam-se quando os mesmos dominantes se assumem como os próprios árbitros do processo".

"Que saudades começamos a ter das heróicas virtudes burguesas do capitalismo mercantil. Que pena já não existirem os clássicos criadores de riqueza, como eram os activos cavalheiros da indústria. O estado a que chegámos não passa de uma declaração de guerra à luta pela justiça, pela liberdade e pela solidariedade".

"Onde estão as tradicionais forças morais da resistência? A plurissecular Igreja Católica que, na hora da verdade, nunca traiu o povo? A bi-secular Maçonaria que sempre deu sentido de futuro às elites monárquicas, republicanas e democráticas da nossa classe política? Onde está a própria Universidade não jubilada, que seja capaz de dizer não aos pratos de lentilhas da gestão dos fundos destinados à investigação científica? Onde estão os homens livres? Livres da partidocracia, da finança e dos subsídios feudalizados?"