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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

19.2.05

Da direita a que chegámos à esquerda que aí vem



Aqui estamos, ouvindo os restos dos últimos discursos de campanha, mais uma vez fora do tempo, dado que tanto não seguimos as orações de mestre Eduardo Lourenço, nem os conselhos que este dá à direita. Talvez a direita a que chegámos, a direita governamentalizada e situacionista, venha a sofrer de destino idêntico ao dos comunistas em 1975, quando estes viviam em regime de triunfalismo cenográfico, enquanto o povo, fingindo que nada dizia, se preparava para fazer o adequado manguito aos pretensos donos do poder. A derrota anunciada é de tal monta que até os comunistas de Jerónimo de Sousa adquiriram finalmente a necessária respeitabilidade ética que muitos os passaram a considerar uma espécie de seguro contra a corrupção.

Segunda-feira teremos no governo gente que, apesar de ser mais tolerante e mais democrata, acabará, da mesma forma, ineficaz, porque, depois de um breve estado de graça, não conseguirá que as promessas se concretizem, gerando a inevitável contradição entre as expectativas e as frustrações. Quem regressa à reflexão depois de ter sujado as mãos nos compromissos de uma campanha, dando o corpo e o nome numa pequena resistência simbólica pela liberdade, apenas teve o prazer de exercitar a cidadania pelo combate de ideias. Apenas experimentou aquilo que agora pode continuar a julgar.

Teremos, sem dúvida, um novo ciclo no regime. E os derrotados entrarão em transe, alguns deles condenados a uma travessia no deserto, onde nem uma certa candidatura presidencial poderá servir de lenitivo e adiamento. Outros grupos, ditos partidos, deixarão até de existir como instituições, dado que se reduziram a meras personalizações do poder, dado que não conseguirão extirpar os tumores que lhe deram ilusória vitalidade. Ainda terão deputados nacionais e europeus, gestores públicos indemnizados e meia dúzia de autarcas, mas serão nomes sem sentido de futuro.



Segunda-feira será tempo de reconhecermos a tragédia da seca e a ameaça de gigantescos incêndios de Verão. O julgamento da Casa Pia voltará às primeiras páginas. Os processos de corrupção continuarão a ser anunciados a conta-gotas. E tudo terá como fundo a grave crise orçamental, o agravamento do desemprego e a flagrante injustiça fiscal. Os patrões irão clamar contra a globalização e a europeização. A tristeza agravar-se-á. O desencanto continuará larvar. O potencial líder governamental não terá condições anímicas para nos mobilizar, porque tanto não representa o messianismo de esquerda, como está longe do sebastianismo de direita. Por outras palavras, o futuro governo poderá ser o último deste regime, nesta encruzilhada histórica que marca a nossa decadência.

O país das televisões , depois de um breve armistício, em breve nos trará a agressiva oposição de velhos e novos "opionon makers", com as portas abertas aos velhos e novos escândalos, onde novos "dossiers" abertos trarão novas chantagens e novas gestões de silêncios. Nenhum dos actuais partidos, solitariamente, tem suficientes quadros para a regeneração de Portugal. E o pior é que uma das facções tenha a tentação de mostrar a face da arrogante perseguição, enquanto os opositores podem não saber fazer oposição.

Os compromissos internacionais que nos irão acabrunhar também demonstrarão a impossibilidade de redescoberta da esperança. Chegou ao fim o nosso tradicional recurso ao sonhar é fácil, desta recente sociedade de casino. Os tempos que se avizinham poderão, aliás, ser trágicos e poderá acontecer-nos que, em termos políticos, para fugirmos ao "out of control", caiamos na mera "pilotagem automática", com um governo de meros autómatos, robotizados pelas regras internacionais, enquanto no plano interno ficaremos crescentemente sujeitos à pressão dos corporativismos, com uma sociedade pouco mobilizável pelo bem comum, onde todos seremos arrastados pelos reflexos condicionados da cenoura e do chicote. Resta o optimismo de quem pode dizer que, segunda-feira, tudo será menos mau. Mas sem uma reversão da inteligência, nada será clarificado.