Viagem a São Bento da Porta Aberta
Uma nova era está a nascer, conforme dizem os sinais do tempo. Porque, só é novo aquilo que se esqueceu. Porque só é moda o que passa de moda. Porque, muito vieiramente, importa recordar que o antigo já foi moderno de que o moderno há-de ser antigo. A eleição de Bento XVI demonstra que não há um fim da história, mas antes um permanecente regresso da história. Não a Leão XIII, da "Rerum Novarum", não a Pio XI, da "Quadragesimo Anno", mas a Bento XV, com mais teologia do que doutrina social, com mais universalidade do que debates sobre as "policies" do "Welfare State". Com algo do sacro-império romano-germânico de Carlos V e com a eventualidade de um Filipe II. Uma espécie de regresso ao dogma, em nome da fé, e com a eventual abertura de um antiquíssimo debate, nomeadamente entre o ser liberal e o ser confessional, "vexata quaestio" de umas brasas inapagadas que as cinzas tinham recoberto, mas que os ventos do tempo novo fizeram reavivar, com o fim da Guerra Fria e os alvores da globalização. Coisas bem mais sérias do que o confronto soarista ou lefebvriano entre integristas e os progressistas, onde os primeiros seriam o diabo e os segundos, a ala vingadora do bem, do progresso e dos amanhãs que cantam.
Não digamos, como o grão-mestre Sebastião de Magalhães Lima em 1912, quando, à frente de uma manifestação anticlerical foi recebido pelo presidente do ministério, Augusto de Vasconcelos, sublinhando que "o Papa de Roma é apenas o chefe do sindicato católico universal e não pode ser considerado como um soberano". Recordemos apenas que este papa Bento XV foi aquele que, em plena I República, em 18 de Dezembro de 1919, emitiu uma encíclica aos prelados portugueses, apoiando expressamente a instituição do Centro Católico Português, o partido-antipartido de que era militante o super-centrista António de Oliveira Salazar e que foi criado de forma centralista pelo conclave dos bispos lusitanos, da mesma maneira como a Ditadura Nacional, já salazarizada, vai criar, por resolução do conselho de ministros, o partido único antipartido do regime derrubado em 1974. O tal Bento XV, o papa da missionação, quando a própria Sociedade das Nações ainda traduzia para direito internacional o "white man's burden", à maneira de Kipling, em plena euforia civilizacional dos impérios coloniais, quando havia uma santa aliança de cristãos e maçons, então donos intelectuais do Ocidente.
Apenas diremos como o meu amigo José Miguel Júdice, hoje, no "Jornal de Negócios": "como sempre que ocorre um processo de adaptação acelerado à realidade envolvente, é totalmente compreensível que muitos se choquem com as evoluções e que gostassem de voltar a um tempo passado, miticamente vivido como uma idade do ouro." Por isso, tratei de consultar o calino, que é o nome que os futricas coimbrinhas dão ao diário da terra e li, também de acordo com os sinais do tempo: "Um projecto à medida de Coimbra. Foi deste modo que o presidente do Grupo Amorim definiu o Dolce Vita, um projecto comercial que vem dar emprego a mais de duas mil pessoas. Depois da inauguração, que contou com um número superior a quatro mil convidados, o espaço abre hoje as portas ao público."
Prefiro retirar-me em espírito para as bandas do Gerês, instalando o meu olhar sobre São Bento da Porta Aberta. Por lá passa o caminho de Santiago, à descoberta de um mundo interior e ninguém também chama, ao nosso edifício parlamentar, Palácio de São Benedito, tal como não é tolerável o uso dos "sanbentinhos". Importa o São Bento tanto da porta aberta como o escancarar das janelas, para deixar entrar o ar fresco desta manhã de primavera, mesmo que venha a apanhar alguma constipação. Que nem os pretensos progresistas ditos de esquerda considerem que ser conservador é um pecado, nem os pretensos hierarcas do dogma reclamem o monopólio do bem, da verdade e da boa relação com o transcendente. Por mim, só sei que nada sei. E sei muito menos do que Filipe II quando mandou para a Inquisição um qualquer frade que reclamava a necessidade de tal monarca passar a ser absoluto. Os herdeiros desta sagrada congregação até podem ser intolerantes e dogmáticos ao serviço da tolerância e do universalismo. Não analisem apenas os meios, cuidem dos fins.
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