a Sobre o tempo que passa: As eleições são a seiva da árvore da república. Mas só a regeneram se o vegetal não estiver podre por dentro

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.10.05

As eleições são a seiva da árvore da república. Mas só a regeneram se o vegetal não estiver podre por dentro



Presidente discursou. Dividiu a crise em pedacinhos. Analisou cada ramo da mesma. E nalguns casos foi até à folha. Acabou por apelar à seiva. Não nos convidou a podar a árvore. Disse muitas vezes república. Misturando o 5 de Outubro com Cícero, São Tomás de Aquino e o Infante D. Pedro. E repetindo as sebentas de Aristóteles e Montesquieu, concluiu que "a república foi, é, tem de ser, o único regime em que a sociedade civil se institucionaliza para defender o bem comum, por oposição aos regimes de dominação pessoal e aos regimes oligárquicos, nos quais o poder se organiza para impor os interesses de um déspota ou de uma minoria". Disse que aquilo que não é república só pode ser oligarquia ou monarcia, sem dizer que a república , enquanto democracia, pode ser demagogia, ou despotismo de todos, isto é, que pode degenerar, como a aristocracia pode volver-se em oligarquia e a monarquia em tirania. Por outras palavras, fez demagogia de palavras, não percebendo que o Aristóteles que parafraseou em dó menor sempre fez análise dinâmica, explicando que todos os regimes em concreto são ao mesmo tempo monarquias, aristocracias e democracias, isto é, regimes mistos.

Sampaio sabe que neste regime republicano ele é monarquia, tal como a assembleia é democracia e o poder judicial, aristocracia. E que o óleo comunicador entre eles é uma partidocracia que degenerou, dado que não interessa responder ao "quem manda?", mas antes ao "como se controla o poder de quem manda?". Hitler era chanceler de uma república. Tal como Salazar ou Estaline. E as monarquias britânica, sueca ou norueguesa são, neste sentido, mais republicanas, mais democráticas, menos oligárquicas e mais aristocráticas, onde o inferno da prática não está cheio das nossas "boas intenções".



Mas concordamos com a seguinte afirmação: "Temos que continuar a afirmar a abertura da sociedade em todos os domínios, opondo às velhas hierarquias e aos velhos privilégios, o mérito, o talento e a qualidade, assegurando as boas condições para a sua expressão". Reparando, contudo, que há novas hieraquias clandestinas, novos privilégios inadmissíveis, falta de meritocracia e atentados à igualdade de oportunidades e ao princípio da justiça. Sampaio, neste sentido, jamais será citado. Aristóteles, São Tomás, Montesquieu e Popper continuarão clássicos nestes domínios na classificação tripartida das formas de poder.



Na análise social, Sampaio reconhece que "nos últimos anos, é patente um crescendo do pessimismo entre nós". Sabemos que ele partilha "as suas inquietações" e reconhece "a seriedade das suas dificuldades". Que "nunca escondi a gravidade da crise". Mas não o elegemos para ser analista nem notário. Mas para influenciar e mandar.

Não concordamos com a seguinte observação:"Não há uma democracia forte sem um Estado forte – e em verdade só há um Estado forte em democracia". Depende do conceito de fortaleza. Porque um Estado grande pode ser fraco. Porque uma democracia forte pode ter um povo enfraquecido. Preferia dizer que em democracia o Estado é a própria democracia, o Estado somos nós todos.

É mentira que "Os partidos são os mal-amados da democracia representativa". Só porque "os partidos políticos estão hoje separados da opinião pública por uma muralha, à qual todos os dias são acrescentados tijolos". Ontem não era assim. Amanhã pode também não ser assim. A democracia é mais importante do que os partidos. Se os partidos estão mal, mudem-se os partidos, para salvarmos a democracia e a própria ideia de democracia. Os franceses tiveram De Gaulle. Os italianos, a operação mãos limpas. Os alemães, a grande coligação. os britânicos, fizeram com que os trabalhistas ocupassem o lugar dos antigos liberais e refizeram os conservadores e os trabalhistas. Aqui, regressamos a Soares e a Cavaco, fazendo com que a democracia corra o risco de se tornar salazarenta. E o Presidente da República num venerando chefe de Estado.



Subscrevemos o que disse sobre "a questão da corrupção". Mas julgamos que tudo vem fora do tempo. Se há cinco ou dez anos seria útil ouvirmos de Belém que "parte significativa dos casos que chegam aos Tribunais indiciam que os dinheiros, ou pelo menos parte deles, não se terão destinado, apenas, a aproveitamento pessoal". Que "a regeneração da imagem dos partidos, essencial para o bom funcionamento da democracia e para a participação empenhada dos cidadãos na vida política, exige, por isso, um tratamento adequado da questão da corrupção". Que "a moralidade mais elementar e o sentimento de justiça continuarão gravemente diminuídos, enquanto for possível exibir altos padrões de vida, luxos, e até reprováveis desperdícios, e, ao mesmo tempo, apresentar declarações fiscais de indigência". Que se impõe "por isso, a revisão criteriosa das leis anti-corrupção, que estabeleçam com maior precisão e rigor os casos a que se aplicam e tornem mais severa a punição dos infractores. Depois, não me cansarei de o repetir, é preciso reforçar os meios de investigação, pois sem investigação não há provas e sem provas não há punição. Mas não chega. A defesa da República exige mais. Quem enriquece sem se ver donde lhe vem tanta riqueza, terá de passar a explicar à República “como” e “quando”, isto é, a ter de fazer prova da proveniência lícita dos seus bens". Hoje soa a tardio e exige-se mais.


Porque já não somos independentes: "a resposta à crise nacional é, em boa parte, uma resposta europeia, se bem que as nossas especificidades tendam a tornar as medidas indispensáveis mais gravosas e mais penosas, como resulta dos limites e da fragilidade dos sistemas de protecção social portugueses... A resposta à crise portuguesa está, numa parte significativa, na resposta comum à crise europeia".

Mas mais vale tarde do que nunca. Se "as eleições são a seiva da República", esperemos que o presidente a eleger não queira ser apenas notário do sistema, fazendo excelentes prognósticos nos últimos minutos do jogo, quando estamos a perder. Aconselhamos o próximo a ler Aristóteles, São Tomás, Montesquieu e Popper. E a perceber que os poderes presidenciais e a legitimidade desse supremo magistrado, eleito por sufrágio universal e directo, nada tem a ver com o 5 de Outubro, dado que, com este o colégio eleitoral foi drasticamente reduzido, face à monarquia liberal, até perdendo em possibilidade de participação popular nas comparações objectivas que podem ser feitas com o sidonismo e o 28 de Maio.