a Sobre o tempo que passa: Da charanga presidencial às guardadoras de cabras

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.10.05

Da charanga presidencial às guardadoras de cabras



Manhã de Lisboa, caminhada nestas vizinhanças da minha casa, onde também estaciona o supremo magistrado da nação e a carrinha do peixe fresco, onde vou à procura de pescada. Por aqui, assisto ao cerimonial da GNR, com o povo a dizer que "eles querem é festa". Paro, cerimoniosamente, quando a charanga emite os acordes de "A Portuguesa" e noto o garbo das mulheres nesta cavalaria da Ajuda. Recordo que, em nota enviada aos jornais pela Presidência da República, Sampaio diz que se referiu à inversão do ónus da prova em matéria fiscal e à possibilidade de poder passar-se a considerar um novo crime no código penal o enriquecimento ilícito. Sampaices...

Delicio-me com a nova edição das obras completas de Camões e, passando os olhos pelos jornais, noto que uma guardadora de cabras de Melgaço ganhou 68580 euros no sorteio do passado dia 12 de Agosto do Euromilhões, mas só anteontem soube que tinha sido premiada, graças a um alerta estampado na primeira página de um jornal local.



Recordo que ontem na televisão o ex-presidente do Tribunal de Contas proclamou, alto e bom som, que o Ministério Público não tem actuado face às denúncias da instituição. Reparo que também o presidente Sampaio, depois de um leonino discurso, teve nota oficiosa à Peseiro. Como confirmou o fiscalista, marido da magistrada Mizé, o novo crime proposto pelo presidente já está em vigor desde o ano de 2000 e não passa de mera tradução de uma lei norte-americana de há cerca de duas décadas. Sampaio volta a meter discursos em certas poças, à semelhança do que emitiu sobre a limpeza coerciva das matas. As charangas da GNR afastam o palácio da realidade.

Nunca pus em causa o brio, a isenção, ou sentido de honra da pessoa do nosso supremo magistrado, nem duvido da garbosa biografia militante e da aprimorada educação, clássica e cosmopolita. Apenas reparo que tanto ele como Santana Lopes foram, respectivamente, presidente e primeiro-ministro sem nunca terem sido ministros, mas simples ocupantes de uma cadeira autárquica na cidade cabeça de um reino que está cada vez mais cabeçudo, por termos deixado crescer um monstro de muitas cabeças, algumas das quais se chamam isaltinos, valentins, fátimas e avelinos.



É por estas loisas que não tenho perdido meu tempo ao dedicá-lo à análise do mais recente "reality show" de uma televisão de sucesso. Cheguei à conclusão vivida do que vem nos manuais sobre o modelo de teatrocracia dos presentes sistemas democráticos: tudo isto é triste, tudo isto não é fado, tudo isto é um jogo sistémico, num clube com rigoroso direito de admissão, onde as regras escritas do Estado de Direito são constantemente ultrapassadas pelas regras dos encenadores do jogo. Não há partidos, há partidocracia. Não há cidadania nem liberdade de pensamento, há democratura.

Que o diga o candidato da coligação PND/PPM à câmara municipal do Porto que não entrou no debate da RTP, apesar de ter por si um parecer da Comissão Nacional de Eleições, bem menos forte do que o critério jornalístico da direcção televisiva, sufragado pelo silêncio cúmplice dos candidatos sistémicos, que nem esboçaram um simples registo da ocorrência. Nesta democracia, os pequeninos e os intrusos não podem torcer o pepino. Liberdade, liberdade, quem a tem, chama-lhe sua.



O jogo eleitoral tem regras semiclandestinas a que todos os políticos de sucesso obedecem. E Carrilho, sem dúvida, um dos nossos melhores professores de filosofia no activo, quando foi transformado em visitador de mercados, com a Bárbara ao lado, deve ter compreendido que, neste reino do vale tudo, ninguém escolhe os melhores, mas os que, por acaso, podem ser melhor formatados pelas regras de um concurso, onde dominam as Cinhas e os Zé Castelo Branco. É por isso que as próprias boas intenções de Sampaio cedem perante a elefantíase legiferante e a fealdade de um simbólico de Estado, onde acabam por preponderar os que melhor se enquadram nas regras da "quinta das celebridades".



Os nossos candidatos autárquicos não passam de meros "nomeados" pela produção do jogo e o povo, de há muito, que deixou de ser soberano: apenas ratifica as escolhas previamente feitas pelos encenadores do jogo. Por outras palavras, uma democracia que não consegue relacionar-se com a meritocracia e um pluralismo que cede à servidão voluntária do caciquismo e dos meandros corruptos dos pequenos donos do poder não serão regenerados por discursos. A palavra perdeu sentido!

Os analistas da coisa, como este sujeito escrevente, podem dramatizar ou adocicar, enquanto muitos outros lavam as mãos como Pilatos, mas foi Guilherme d'Oliveira Martins que acabou nomeado para o Tribunal de Contas e não Saldanha Sanches, apesar de continuar no subliminar das gentes aquele mau feitio de certos antigos militantes da extrema-esquerda para quem importa que os ricos paguem a crise, não reparando que a questão social de hoje tem mais a ver com a clandestinidade dos novos-ricos e a tristeza acabrunhada dos novos-pobres. Pobre lusitana republiqueta que não consegue transformar em potencialidade mobilizadora a circunstância de haver 400 000 candidatos autárquicos e de haver alguma qualidade no debate dos Rio, Zézinhas, Sá Fernandes, Assis, Carrilho e Carmona, belos exemplares na nossa zoologia partidocrática, perdida entre patos-bravos e aparelhistas.