a Sobre o tempo que passa: Não vemos um boi à frente dos olhos...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

9.10.05

Não vemos um boi à frente dos olhos...



Hoje não será dia de grandes diários blogosféricos. E os acasos levaram-me à SIC-N, quase de madrugada, para comentar as notícias dos jornais da manhã. E disse que 80% das parangonas eram futebol, 10% "reality shows", 5% de crises sociais internas e 5% de desgraças internacionais. Porque nenhum dos jornais trazia a notícia do dia, isto é, que começou a chover. Porque nenhum dos jornais podia falar das emoções das eleições autárquicas. A hiperinformação desta aldeia global não nos deixa ver um boi à frente dos olhos, neste normal anormal, onde não sabemos compreender o que passa à nossa volta, isto é, prender coisa com coisa, árvore com árvore e intuir a essência do todo.

Disse, em primeiro lugar, que há eleições. Que em Portugal há eleições desde Dezembro de 1820, isto é, há cento e oitenta e cinco anos. E que nas de hoje se mobilizaram 400 000 candidatos para 43 000 lugares em disputa, com cerca de 26% de pequenos empresários e pequenos comerciantes a quererem servir o bem comum, mas que, infelizmente apenas discutismos cinco ou seis candidatos, confundindo a folha de árvore com a floresta. Por outras palavras, nestas eleições talvez se tenham mobilizado dez vezes mais candidatos do que os militantes partidários existentes.



Sublinhei não ser militante de nenhum partido e que, como a maioria dos meus concidadãos, ainda estava cheio de dúvidas sobre em quem iria votar. Logo, apelei ao clássico imperativo categórico da democracia, ao expressarmos a "vontade geral" em vez da "vontade de todos", como dizia Rousseau, isto é, para que cada um votassee como se fosse o próprio soberano, escolhendo sem pensar nos interesses particulares, mas no bem comum.

Porque nos devemos abstrair das diversões dos três "efes" da monarquia napolitana de 1829, que a oposição ao salazarismo traduziu por "fado, futebol e fátima". Qualquer despotismo gosta que o povo pense em "festi, frumenti, forchi". Primeiro, que pense no circo. Segundo, que se amargure com a fome. Terceiro, que tema a repressão. E hoje o circo chama-se futebol e 1ª Companhia, onde ficámos a saber que os Scolari vão ao Mundial, tal como a selecção nacional de Angola, mas não os Camarões do Artur. Até que João Pinto se meteu com bruxas, que o Zé Castelo Branco está engripado e que outra concorrente é filha de não sei quem dono de um bar.



Fome tem a ver com africanos que tentam entrar na Europa através dos enclaves espanhóis em Marrocos e que um deles se chama Ceuta, onde ainda hoje, tal como desde 1415, aí flutua a bandeira das nossas quinas. Não ficámos a saber muito do terramoto na Índia e não reparámos que em furacões na América Latina morreu mais gente que no Katrina. E também não reparámos que a gripe das aves pode ser parecida com a pneumónica de 1918 e já chegou à Roménia.

O resto são as coisas da nossa turbulência interna, onde nas aldeolas do país desertificado foram-se os padres, mas chegam os professores desterrados, tal como Bibi vai ser posto em liberdade e os militares correm a pedir passagem à reserva. E no âmbito das memórias, há trinta anos, tipos da UDP afogaram no Tejo um tipo do MRPP, quando muitos dirigentes da direita e do centro-esquerda de hoje ainda eram maoístas, marxistas-leninistas-estalinistas, e consideravam a China de Mao e a Albânia do mesmo tipo como o sol da terra. Não há notícias sobre a morte do Bispo de Leiria e Fátima, nem comentários à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no "Prós e Contras". Nem protestos contra a circunstância de estações de televisão não terem cumprido recomendações da Comissão Nacional de Eleições.



Saí da SIC de Carnaxide, passei pelo santuário da Senhora da Rocha, onde em 1822 terá aparecido a mesma divindade que nos visitou em Fátima no ano de 1917, um ano antes de chegar a pneumónica e meses antes de Sidónio, e fui votar. Estava muita gente na bicha. Na vigilância, estava um jota, profissional da política, olhei para o dito, fiquei farto da partidocracia, reparei que um meu antigo vizinho concorria como independente e decidi escolher contra o sistema, optando pelo mal menor. Escolhi os homens simples que não andam nas parangonas e não passei um cheque em branco aos grandes gestores deste blocão. Fiz como o Zé Povinho de Bordalo e tentei ser coerente com a minha revolta. Não quero Sidónio nem Gomes da Costa.