a Sobre o tempo que passa: As ditaduras são sempre do inferno dos outros...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.11.07

As ditaduras são sempre do inferno dos outros...


O memorialismo das conferências tem levado a que muitos glosem sobre os nossos cem anos de franquismo, mesmo nas vésperas do regicídio. Ainda na semana passada, na Faculdade de Direito de Lisboa, também fiz uma viagem sobre a matéria. Contestando todos os que cometem o vício da utilização retroactiva de conceitos, especialmente quando se usam unidades de pensamento pós-fascistas, pós-comunistas e pós-totalitárias, para outras circunstâncias do tempo, mesmo que no mesmo lugar.


Por isso, acho tão estranho que se pegue em João Franco para o reduzir ao caixilho do fascista salazarento, numa espécie de ditador-filósofo de antes do 28 de Maio, como se conclua que ele foi vítima das manobras maçónicas haeckelianas da ala artilheira de Sebastião Magalhães Lima, sem dizermos que Norton de Matos começou como franquista, quando Alfredo Pimenta e António Sardinha alinhavam como exaltados republicanos positivistas na greve académica antifranquista. Seria mais correcto fazer um paralelismo com as sucessivas tentativas de ditaduras genesíacas que geraram ou regeneraram regimes em Portugal, especialmente em épocas de frustração messiânica.


Franco foi uma dessas ilusões, com alguns sinais de epilepsia. Foi bem menos do que a ditadura do guerreiro e reformador duque de Bragança, nos alvores do liberdadeirismo, onde muitos falam, justamente, em Mouzinho da Silveira, mas poucos referem o silencioso, eficaz e coerente José da Silva Carvalho. Foi uma péssima imitação dos sinais reformistas da ditadura setembrista, entre Passos Manuel e Sá da Bandeira. Ficou mais perto, no estilo, do interregno de Costa Cabral, o tal que nos conduziu à Maria da Fonte e à Patuleia. Seria melhor concluirmos que D. Carlos se enganou e que João Franco falhou. Porque quem destruiu o realismo em Portugal foram tanto os monárquicos como uma Corte que não percebeu que não devia perder a opinião pública, conquistada por D. Maria II e por D. Pedro V e que acabou por não poder ser reacarinhada por D. Manuel II, o nosso querido e último rei liberal.


Ao contrário do que aconteceu com o governo provisório da República, com a ditadura das finanças de Salazar e, mais recentemente, com os seis governos provisórios do abrilismo, Franco fez um gesto a que não corresponderam adequadas passadas, gerando a tragédia. Em primeiro lugar, falhou porque os rotativos monárquicos resistiram e porque os republicanos o boicotaram. Em segundo lugar, porque, procurando responder às expectativas da "vida nova, conforme o discurso progressista de António Cândido, acabou por não passar de uma imitação barata da imagem de um sabre sem pensamento, os dois elementos que Eça de Queiroz pensava ver na emergência ministerial do seu amigo Jopaquim Pedro de Oliveira Martins, quando este procurava dar corpo às ilusão de "vida nova".


Por outras palavras, o franquismo tanto conduziu ao regicídio como, indirectamente, acabou por inquinar a própria esperança da república que, enredada em sangue, gerou ainda mais magnicídios e mais equívocos ditatoriais. Basta dizer 1918 e Sidónio, ou 1921 e António Granjo mais Machado Santos. Basta assinalar que em 1915 o presidente Arriaga tentou repetir o gesto de D. Carlos e pôs Pimenta de Castro a imitar João Franco.


Prefiro assinalar a soma de 1908 com 1918. Com novo desespero sanguinário, quando muitos permitiram que se pensasse que um acto de violência poderia ser menos violento do que reais ou imaginados estados de violência. E tal era a confusão que até o democrático governo do liberal e maçon António Granjo terminou numa noite sangrenta, assim se acrescentando a lista dos mártires da pátria, enquanto as chamadas forças vivas continuavam a engordar os poderes fácticos, lavando as mãos como Pilatos, para que a culpa continuasse a morrer solteira. Basta repararmos onde estava Alfredo da Silva em 1908, 1921 e 1932.


A terrível consequência acabou por ser o autoritarismo neo-inquisitorial e neofradesco de quase meio século de suspensão da política, em nome de impérios e teocracias. Felizmente que a nossa geração não repetiu os erros com o pretexto do Verão Quente ou do 25 de Novembro de 1975. E assim a democracia pós-revolucionária ganhou legitimidade. Logo, não vale a pena continuarmos esta guerra civil fria, pintada de história, com muitas estórias. Porque a culpa não pode continuar a ser sempre do fantasma do outro que não é da nossa seita.


Importa sermos capazes de proceder a uma adequada institucionalização de conflitos (Aron), com a urgente procura dos lugares comuns entre adversários, conforme a estimulante definição de democracia de Ortega y Gasset, a tal que ainda espera pela compreensão dos portugueses que restam. Não queiramos que antigos grevistas da extrema não sei qual, da greve passada, se transformem em ortodoxos torquemadas do situacionismo fratricida de sinal contrário. Eu prefiro recordar que tive orgulho de ser adjunto de um governo ditatorial, o VI Governo Provisório daqueles vencedores do 25 de Novembro que não demitiram os vencidos do mesmo golpe.