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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.11.07

Em todos os Estados onde se destruiu a variedade local, eis que um pequeno Estado se forma no centro



Ontem, ao assistir às novas do telejornal da noite, foi-me dado concluir que Portugal tem um ministro dotado de compaixão e humana sensibilidade. Quando os jornais e telejornais trouxeram a sua excelência esse insulto ao bom senso de mais uma estúpida decisão, de mais uma junta médica, tão estúpida quanto milhares de outras mais estúpidas que, contudo, não tiveram direito a jornal e a telejornal, o representante máximo da coisa, no plano moral e institucional, decidiu fintar o óbvio, e ocupar o tempo de antena, pintando-se de humanista e fazendo como os reis absolutos de outrora: conceder sua graça da dispensa e apelar a milhares e milhares de funcionários para boicotarem a lei, telefonando a jornalistas para a indecorosa exposição da vida privada e das intimidades, porque só assim a cunhocracia absoluta surte efeito.


Por outras palavras, em Portugal só é eficaz a excepção, porque a regra é uma junta médica presidida um manga de alpaca, cumprindo silogismos de economato, mercearia e almoxarifado. Por outras palavras, sua excelência ministerial, dotado de um belo sotaque nortenho, à Portugal profundo, exibiu o pior dos concentracionarismos: admitiu que o vértice do poder pode ser inundado com informação secundária e confirmou como a máquina que o mesmo comanda e como as regras que o dito emite, ou pode revogar, são anónimas trituradoras do velho papel azul e bem selado onde já não circula um pingo de bom senso nem um raiozinho de humanidade.


O golpe publicitário do senhor ministro foi uma declaração de falência de um estadão terrorista. Tal estado a que chegámos, ao necessitar desta urgente intervenção humanitária da ministerial figura, veio confessar, de forma manifesta, que já não é uma pessoa de bem. Precisa que, todos os dias, os senhores ministros tenham que aparecer em público a corrigir as consequências das péssimas regulamentações que fazem, das péssimas máquinas que dirigem e daquela falta de educação cívica que não admite a possibilidade de uma fraude à lei em nome da justiça.




O tal senhor ministro das finanças e da função pública do Leviathan que, sem qualquer hipocrisia, me parece boa pessoa, é institucionalmente responsável pela desorganização do trabalho nacional, naquela vertente dos trabalhadores que têm o senhor Estado como patrão. No caso vertente, demonstra-se como alguém que tem uma cadeira de poder no Terreiro do Paço, em nome da luta contra o abstracto défice, ocupou funções públicas que deveriam caber a um mero presidente de junta de freguesia.



O que seria de Belmiro de Azevedo se interferisse na esfera de autonomia do gestor de pessoal de uma das suas lojas de bairro, a quem qualquer sociólogo de organizações atribui poderes para avaliar das circunstâncias em que pode, ou não, exercer funções um dos seus trabalhadores das caixas de compra e venda? O que seria de Durão Barroso se tivesse que ir para o "Euronews" declarar que vai salvaguardar o humanitarismo, mandando para casa um funcionário da biblioteca do Centro de Documentação Jacques Delors, no CCB? Junta-se imagem do belo edifício da ADSE, criada por Marcello Caetano, quando ainda havia assistência na doença e servidores do Estado, mas cujo nome e traça arquitectónica a democracia conserva em betão de conserva...

Quando um qualquer sistema inunda o centro de informação secundária e não lhe faz chegar a informação vital já não temos apenas centralismo, isto é, um processo de construção do Estado marcado pela atracção face ao centro do aparelho de poder que, de cima para baixo, dita regras de organização uniformes. Já não temos apenas esse processo, oriundo do absolutismo monárquico, foi particularmente exacerbado pelo jacobinismo revolucionário e democrático. Já atingimos o nível decadentista do concentracionarismo.


Quanto ao mero centralismo, Benjamin Constant chamava a atenção para a circunstância de o próprio centralismo democrático ter destruído a variedade local em nome da construção do Estado, quando os revolucionários, para construir o edifício, começaram por pulverizar os materiais que deviam utilizar, esquecendo que a variedade é a organização; a uniformidade é o mecanismo. A variedade é a vida; a uniformidade é a morte. Assim, em todos os Estados onde se destruiu a variedade local, eis que um pequeno Estado se forma no centro; na capital aglomeram-se todos os interesses, vão agitar-se todas as ambições. Na sequência desta atracção pelo centro, surgiu assim a tendência para a uniformidade: é pena que não se deitem abaixo todas as cidades para reconstrui-las segundo o mesmo plano, nivelar as montanhas para que o terreno seja igual em todo o lado; é estranho que não tenham ordenado a todos os habitantes para usar o mesmo fato, a fim de que o senhor não reencontre mais a miscelânea irregular e de chocante variedade.


O que se passa em Portugal é de outra índole: estamos já a pisar o terreno do concentracionarismo. Aliás, já Raymond Aron, em A Defesa da Europa Decadente, definindo, de forma magistral, o concentracionarismo soviético, disse que uma das características da forma de governo estalinista, e talvez, até, soviético, era a subida até à cúpula, de problemas secundários; o gabinete político tomava decisões que noutros regimes, teriam sido tomadas em escalões inferiores.

Com efeito, quanto maior é o concentracionarismo, menor é a selecção da informação que chega ao topo do centro e maior é a irresponsabilização dos delegados do mesmo centro junto da periferia. Isto é, o centro acaba por ficar desinformado sobre os problemas maiores da realidade e o excesso de poder concentrado acaba por não ser utilizado, de maneira que um pequeno David, utilizando as fundas do respectivo poder funcional, pode derrotar o gigante Golias do concentracionarismo. Que o diga o jovem alemão Mathias Hurst que, fintando os sistemas de defesa aérea de uma superpotência, acabou por fazer aterrar a sua pequena avioneta em plena Praça Vermelha; ou então, de forma mais dramática, o que aconteceu com o desastre de Tchernobyl.



O concentracionarismo traduz-se num sistema de comando em forma de pirâmide, onde no vértice está um qualquer Secretário-Geral, apoiado por um qualquer Politburo da mesma instituição (por exemplo, 19 membros) e por um qualquer Praesidium Supremo. Assim, se o Politburo pode emanar do Comité Central (p.e., 360 membros) e este, do Congresso do Partido (p.e., cerca de cinco mil membros), já o Praesidium pode ser eleito pelo Soviete Supremo, dividido em duas câmaras: o Soviete da União ( p. e., cerca de 750 membros, à medida de um delegado por cada 30 000 pessoas) e o Soviete das Nacionalidades (p. e., cerca de 750 pessoas). Esperemos que Mathias Hurst aterre no Terreiro do Paço e permita a necessária ingerência humanitária da compaixão... que venham outros tratar-nos da saúde...